domingo, maio 22, 2005

Ele nas manhãs leves.


Às seis horas da manhã Ele se levanta, toma um banho rápido, está frio, veste sua ceroula, a calça, a meia de lã, a camiseta de algodão fino, o suéter preto ganho da avó, a camiseta uniforme do colégio e a indefectível blusa de flanela. A brisa tépida que vem da janela ao abrir faz com que se sinta agasalhado. Seis e quinze, desce até a cozinha e esquenta leite com chocolate, come pão com queijo e manteiga derretidos, todos dormem na casa. Seis e vinte, a mãe levanta-se e se surpreende com a presença do filho na cozinha, pronto e tomando seu desjejum com naturalidade excessiva. Questiona o garoto que nada responde. Insiste e Ele diz que não queria mais dormir, sentira vontade de se levantar mais cedo e não tinha razão para evitar.

Junta suas coisas e pega o caminho da escola, a mãe apressa-se em impedir o filho de partir tão cedo, alega que se esperar poderá levá-lo ao colégio, pois há o irmão para ser levado mais tarde. Ele não quer, prefere ir só.

No trajeto de dois quilômetros, Ele pensa exaustivamente em tudo, estava aborrecido com a mãe naquele dia, não queria ter de enfrentar o percurso de dois quilômetros ouvindo a voz maçante dela reclamar lamúrias sem fim. Não sabia ao menos o motivo de estar chateado com ela, só não queria ter de aturá-la. Talvez tenha sido o sonho da noite anterior. Talvez tinha sonhado com a mãe o incomodando durante muito tempo, talvez apenas sentia mágoas inconscientes por ela, que não era a melhor do mundo e que nunca preenchia as brechas que poderiam fazer com que fosse. Na verdade ela não sustentava o menor interesse por ser a melhor mãe do mundo, e fazia isso parecer virtude.

Quando a aula acaba, Ele volta pelo mesmo caminho, nenhum colega o acompanha, todos estranham ou têm medo Dele, seu cabelo é muito comprido, seu rosto muito pálido e fino, seus modos muito esquisitos. Precisa ser ouvido, precisa de amigos, mas a mãe tem problemas demais, as pessoas em sua volta estão chafurdadas em suas ocupações, ninguém sente o cheiro que exala de fora dos próprios problemas.

Não se cansa de tocar no rádio discos antigos, discos de motivação sem fundamento, discos queixosos de pessoas que tentam se empurrar e empurrar quem ouve para o fim do vencedor. Mas Ele não é vencedor, é um perdedor espúrio, um perdedor que não serve para catar latinhas, um perdedor que não sabe ser mendigo decente que prostitui belas palavras em troco de migalhas. Ele só sabe cantar para si suas próprias derrotas e desilusões, musicados meticulosamente em notas deprimentes, notas de aversão, notas de desencaixe.

Como hoje, desde muito tempo, e por um longo futuro ainda, Ele vai continuar percorrendo seu caminho de dois quilômetros, até sua escola fundamental sozinho, sem ouvidos, sem carícias, sem vontade. Faz porque tenta ainda uma salvação, tenta aprender a ser gente, tenta se encaixar na ponta do alfinete sem cabeça, sem tacha, sonha um dia poder se equilibrar num chão – para Ele – incongruente, onde todos se acotovelam e dão um jeito de amontoar. Mesmo com seus pés já inchados, Ele não vai desistir, ainda não pensa nisso, porém não descarta por todo essa possibilidade.