Seu Oswaldo e seu 'submundo'.
Série: Escritos de guardanapo.
Seu Oswaldo tem um bar em uma esquina da cidade vazia. Ele toca bar já há dezesseis anos. Sempre deixa a TV e o som ligados. Já se acostumou a ler os lábios dos atores e dos apresentadores de programas de entrevistas e telejornais. Passa todos os dias em seu bar, recebendo amigos, bêbados, e todo tipo de gente a fim de se embriagar e jogar uma sinuquinha. A diversão dos pobres é muito limitada mesmo, mas, sempre conseguem se divertir, é incrível. O submundo se passa em uma redoma côngrua. Seus integrantes se matam, se devoram, se entorpecem, amam, e pensam, apesar dos limites, e isso tudo se justifica, se conforma, não sei como. Pode parecer paradoxal, mas há congruência. São personagens anônimos, condicionados a serem qualquer coisa, por qualquer coisa.
- E aí, resolveu sair da toca hoje? – Questiona-me, Seu Oswaldo.
- Pois é. Ficar em casa sempre incomoda, eu preciso ver o mundo - Respondo.
- Hoje vai ter Alquimia, fica ali na rua de baixo.
- Legal, acho que vou acabar indo pra lá.
- Eu toco, sei tocar – Seu Oswaldo.
- Ah é, legal. Que tipo de música o senhor Toca?
- Raul, gosto de tocar Raul e música sertaneja. Mas sabe como é, acabo tocando sempre o que a moçada pede. E gosto, gosto mesmo é de tocar, seja lá o que for.
- Entendo. Isso é bom. E por que o senhor não monta um som aqui em seu bar e toca?
- Já não tenho mais voz suficiente, tô rouco. Fui em São Paulo me consultar com o melhor médico de voz, ele me passou tratamento com fono. Fiz por seis meses, não adiantou nada. Voltei lá e ele disse que poderia me operar, aí ficava bom. Mas sabe quanto custa essa porra de cirurgia?
- Não, quanto?
- Quinze mil reais. Mandei o cara ir se fuder. Não tenho esse dinheiro.
- É, mas a voz é assim mesmo, vai acabando junto com a agente. Eu nunca tive voz, mas acho que deve ser assim.
- É. É uma grande bosta. Mas eu escrevo músicas também.
- Pó Seu Oswaldo, legal. O senhor é um artista mesmo.
- Pois sou ué. Mas... E as cocotas? Cadê?
- Não sei, seu Oswaldo. Estão por aí, nesse mundo louco.
- Você não é viado não, é?
- Não, não. Não sou.
- Elas vão mais tarde ali no Alquimia.
- Poxa, se essa cerva me inspirar eu acabo indo pra lá também.
- Mas... Diga-me uma coisa, Seu Oswaldo: O senhor gosta de tocar esse bar?
- Quer saber mesmo: eu gosto. Eu tinha um boteco lá na rua de cima, de lá não gostava muito não, mas esse aqui eu gosto pra cacete, sabe como é, vem só amigo, parceiro, camarada, esse tipo de gente chegada, sabe? E isso é muito bom. Naquele outro, a galera ‘muvucava’ e não consumia. Porra, toma no cu deles, só jogavam sinuca e davam raiva. Aqui não, aqui a galera bebe, consome, me dá lucro, entende?
- Perfeitamente, Seu Oswaldo.
Sim, o submundo é deslumbrante, ele é orgânico. Achava que não havia impressões nesse mundo, que as pessoas não pensavam, que não correspondiam com ação a um pensamento prévio. Mas me enganei, como me engano todos os dias. Achava que eram apenas pessoas opacas, vazias, que vinham ao mundo pra cumprir tabela, pra ser mais um operário na fábrica, pra ter um boteco e vender cerveja a jovens desocupados como eu, pra ouvir música ruim, e, de vez em quando, surtar e estuprar alguma menininha da burguesia. O submundo é pujante, ele deveras baseia e sustenta o mundo em que vivemos. Ele é fonte de inspiração de poetas bêbados, é reduto de lamentação para queixosos, é uma confraria de pessoas caóticas imersas, como peixinhos tolos, no turbilhão do mundo. Não sei se isso faz sentido, mas eu preciso viver esse submundo, eu preciso palpar a vida dessas pessoas tão estranhamente belas. Preciso me perder por aí, um pouco.
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