domingo, maio 29, 2005

Crônicas de um psicanalista 2 (Desabafos e desavisos).

Hoje é domingo, em dias como esse eu costumo ficar deitado no chão da minha sala, olhando o teto; adoro observar tetos, eles podem dizer tudo sobre uma casa, um ambiente, uma pessoa, exceto quando são maquiados ou dissimulados (pintados), o que também denuncia características de quem vive sob ele.

Anteontem, sexta feira, não foi um dia atípico; tudo que eu mais quero do resto da minha vida é viver um dia atípico, um dia que me inspire epitáfios, creio que já é hora de pensar sobre isto. Não quero morrer sem ter uma frase bonita em minha lápide, no entanto, não basta ter a frase, ela tem de ser verdadeira, tem que ter sido vivida.

Acordei às nove e meia, um pouco atrasado, só teria paciente às quatorze horas, estava tranqüilo. Foi difícil chegar ao sono, perambulei tanto pelo meu apartamento vazio, que resolvi descer e ir até qualquer bar, e eu achava que já tinha me livrado do alcoolismo, mas não, tudo culpa do sono que falta, da companhia que não apraz, da atividade que não desgasta, da vida que não acaba, tive que recorrer novamente a ele, ao doce, ao purificador leal, o álcool, danem-se recaídas, danem-se o que diriam os médicos, precisei beber e bebi, como você precisa respirar. Não sei se ele foi o culpado por eu ter perdido tudo em minha vida, ter me levado a vícios mais pesados, mas eu não o culpo, culpo minha demência, minha fobia social. Na verdade, meu grande problema é não suportar mediocridade.

Quando conheci Rita, há trinta e um anos, estávamos terminando a faculdade, ela fazia desenho industrial, design daquele tempo, era uma garota visual, desenhava muito, pintava, fazia de tudo com imagens e com seu corpo, tinha tatuagens escondidas, e eu admirei aquilo, era tão contrário àquele mundo, vivia enfiado em pensamentos sem fim, em insônias metafísicas (sempre fui insone), e ela veio pra me despertar ao mundo dos sentidos, ver as cores; antes, era como se eu vivesse em um filme P/B, não havia cores. Encantado, namoramos, algum tempo depois ela engravidou e tivemos que casar, não me incomodei, gostava dela, Rita também. Sofia nasceu alguns meses depois. Três semanas antes eu havia entregado minha monografia, Rita havia trancado. Comecei a trabalhar e a vida foi seguindo seu curso normal. Depois de algum tempo, Rita retomou e concluiu seu curso pra nunca mais trabalhar, pois logo em seguida veio Bárbara.

No começo, éramos uma família interessante, talvez até exótica, Rita decorava a casa e as meninas com suas excentricidades e extravagâncias multicoloridas, eu adorava aquilo, mas me sentindo importante, mantinha meu visual circunspecto de psicanalista, usando roupas cinzas e pretas variando pouco. Fosco. Não me deixava afetar. Talvez fosse feliz, na verdade eu era um tonto.

Os anos passaram, as meninas cresceram, foram criando seus universos para depois nos expulsarem deles, eu e Rita mergulhamos numa realidade absolutamente insossa, ela abandonou as cores, eu abandonei os livros, as meninas nos abandonaram. Rita ficou insuportável, medíocre, já não inventava formas perspicazes de burlar a realidade, já não cativava nem mesmo o vento em sua volta, os modos de vida dela se tornaram comuns, vulgares, e eu não podia lidar com aquilo. Brigamos e Rita me mandou embora, fui convicto de que mudaria minha vida. Só que depois disso tudo aconteceu, ganhei e depois perdi de novo; aqui estou cada vez pior. Malogrado pelas pessoas que vejo, pelos hábitos, criei minha fobia social numa redoma impermeável e a fiz perniciosa, com todo o carinho nefasto que há dentro de mim.

Sexta, às quatorze horas, minha paciente era uma mulher de trinta e seis anos, contava-me futilidades todas as sessões. Muitas vezes eu dormia de não agüentar a chatice. Mantive-a por algum tempo por ela ser da classe dos bons pagadores. Mas ontem não pude resistir. Falou o tempo todo sobre uma briga ‘séria’ que tivera com o marido em função da escolha da cor da nova casa deles. Não tenho mais idade pra isso, prefiro não entrar nos detalhes da ‘briga’; ao final da sessão, apenas disse-lhe que não voltasse mais, porque o problema era tão grave que eu me sentira incapacitado de tratá-la. Perguntou se havia alguma indicação, ficou preocupadíssima com o ‘problema grave’, fez mil perguntas, deixei-a falando sozinha e por fim, num estouro, pedi-lhe que se retirasse logo para que não me enlouquecesse. Saiu inconformada. Talvez eu precise criar paciência pra curar o vulgarismo destas pessoas, mas não tenho, talvez então eu deva lecionar e instruir jovens para esta tão nobre, salvadora e necessária profissão, a profissão de Redentor de Almas, ou seria melhor Resgate humano, ou Aniquiladores da mediocridade, sim, uma ciência chamada mediocreismo. Ela seria estudada, haveria especialistas capazes de diagnosticar e combater a doença, haveria seminários, fóruns, criariam novas possibilidades dentro do mediocreismo. Não tenho mais saco pra isso. Deixa pra lá. Estou curtindo minha fase fracassada da vida, vou ficar em paz que ganho mais.

Explico: coisa que não suporto é a mediocridade, penso que deveria escrever um tratado sobre esse tema, discorrer exaustivamente para depois me sentir livre e morrer. Mas tenho preguiça, tudo me é tão difícil nessa idade, não consigo sentar e organizar o que quero dizer. Acho que a mediocridade, a vulgaridade, e essas coisas de gente indecente, deveriam ser tratadas como doença da humanidade a ser extirpada para a salvação da espécie. Tudo de ruim que existe é causado por gente assim. Gente se despedaçando em despedidas longas e enfastiantes, gente evitando assuntos ‘obscenos’ pois se ofendem com facilidade. Sinto vontade de cuspir e vomitar merda em cima de toda essa hipocrisia, esses falsos melindres, esses assuntos que são evitados e censurados por motivos desonestos. Por que censurar a realidade? Por que censurar coisas que todos fazem, fizeram ou vão fazer? O que há de errado nisso?

Todo o sofrimento da exclusão social que sofro hoje é decorrência da minha ação de purificação. Trato as pessoas com objetividade, e elas me destratam. Convencionei a só abrir a boca quando for necessário, aí me chamam de esquisito. Esquisitas são as pessoas que conservam tradições incoerentes, infundadas e que elas nem mesmo sabem de onde vieram ou por quê existem.

Já são vinte e uma horas de domingo e eu continuo aqui, deitado no chão do meu apartamento vazio, olhando o teto, estou com vontade de beber algo para ter sono, sei que não devia, mas sinto vontade. A desvantagem de ser alguém correto, e socialmente coerente como eu, é não ter amigos, não ter pessoas que me compreendam. Sei que elas existem, mas estão muito distantes de mim ao ponto de não poder convidá-las para beberem algo em minha casa, sob a condição de que elas trouxessem a bebida. Estou só. Moro em uma cidade cheia de gente indecente, o que me faz mais só ainda. Talvez se eu pudesse me dividir em dois, ou quem sabe até em três, poderia não precisar de mais ninguém, mas infelizmente sou indivisível. Vou continuar olhando o teto, até o sono vir ou o sol nascer, vamos ver quem vai vencer hoje. Às oito tenho que estar no consultório, sessão com o Orlando, aquele que casou com o michê e agora está arrependido. Talvez eu o dispense amanhã. Vai depender de como estará minha geladeira.