sexta-feira, maio 27, 2005

Crônicas de um psicanalista.

São cinco horas da manhã e eu ainda não preguei os olhos, droga, tenho um paciente logo às oito e preciso estar inteiro pra agüentar aquele patife contando sua vida sexual desastrada. Paciente não, um homossexual que tem surtos de misofobia e seu companheiro não entende. Foi casado com uma mulher durante doze anos, teve uma filha, sempre levou uma vida monótona, até conhecer Eusébio, um michê. Tudo começou por curiosidade, Orlando pagou-lhe para apenas tomar alguns drinques em seu apartamento num fim de semana em que sua esposa havia viajado, e conversar. Orlando queria saber como era aquilo. Os encontros se repetiram em vários outros locais, se apaixonaram reciprocamente, Eusébio parou de cobrar, Orlando divorciou-se da esposa e montaram um apartamento. Agora, depois de já terem dois anos vivendo juntos, Orlando veio procurar-me porque tinha surtos de misofobia. Hoje, às oito, será nossa segunda sessão, ainda estou a perscrutá-lo, mas creio que seja um caso de indecisão sexual. Orlando levava uma vida insípida com sua ex-esposa, teve um vislumbre da fantástica vida do michê, empolgou-se, afinal não era muito conservador, e acabou casando com ele. Agora, depois de tudo, caiu na real de que não é homossexual e deve ter dado a desculpa, para Eusébio, de que estava sofrendo de misofobia. Deve ter me procurado só pra dizer-lhe que está se tratando. Eles que se fodam, o importante é que me paguem, já estou velho e preciso de dinheiro para viver até o fim, fiz juramento, senão desistia logo e mandava me enterrarem.

Sete e meia resolvo levantar da cama, ou colchão, havia vendido minha cama de madeira maciça com colchão de água pra comprar cocaína, na época que fui viciado, mas pronto, já passou. Esquento leite num fogo amarelado, misturo um resto de achocolatado e tomo, um gosto azedo inflama minha boca, cheiro a caixa com o resto do leite e está podre. Merda de mania de abrir a caixa de leite e deixar que azede. Estou com fome, mas já são quinze para as oito, preciso me apressar. Desço correndo as escadas, digo bom dia a ninguém, prometi pra mim mesmo evitar esse tipo de reverência, quero deixar de ser humano polido, é uma das minhas metas, por isso também evito o elevador, mas mesmo assim sempre tem um infeliz apressado como eu indo pelas escadas.

Ganho a rua, está frio, me contemplo por estar bem agasalhado e entro no ônibus, tudo bem, são apenas dez minutos até o consultório. Quando chego, Orlando está impaciente com minha demora, pergunta-me sobre a secretária, respondo-lhe que a havia despedido por contenção de gastos e justifico: “não é necessário, estou me abstendo das inutilidades”, Orlando sorri embaraçado.

Orlando está bem vestido, é um puto burguês mesmo, tinha uma fábrica de cachecóis, se não me engano. “Eusébio só pensa em transar, eu não gosto mais, todo dia fica constrangedor evitá-lo, ele tenta durante a madrugada, tá dando desespero, acordo às vezes com ele já se enfiando em mim”. Puta merda, o pulha mal chegou, deitou-se no divã, e antes que eu começasse a por meu raciocínio em funcionamento, já começou me dizendo essas obscenidades. Tenho que lidar com cada coisa. “Veja bem... Orlando”, começo a pensar com certa dificuldade, as pálpebras pesam, não consegui pregar na noite passada, “Talvez não seja o momento de vocês rediscutirem a relação?”, Ufa, consegui falar algo, nada pior do que um psicanalista já velho, incompetente, e com disposição nenhuma de trabalhar. “Não sei como proceder, eu fiz ele abandonar seu mundinho de prostituição, ele me amou, confiou em mim, é só um menino de vinte anos, veio de família humilde, iludi e comprei o guri, agora vejo que foi tudo por capricho; mas pra ele não, pra ele é verdadeiro, está amando a vida burguesa que leva comigo, creio que me ama também”. Ouvindo essas coisas eu só pensava em sacanagem, fico imaginando posições eróticas entre Orlando e um rapazola de vinte anos, um sodomizando o outro, revezando, faço caretas com esses pensamentos, sorte que Orlando não me vê, o divã fica pro outro lado. “Orlando, você deve ser sincero, se esta situação lhe incomoda, lhe é desconfortável, você deve chamá-lo e expor tudo o que está se passando”. “Sim, mas não quero machucá-lo”, “Compreendo sua nobre preocupação, mas não pode se agredir para evitar que ele se sinta agredido”. Orlando fica um tempo calado, pergunto-lhe se não tem outras coisas para dizer, pergunto sobre a vida profissional, Orlando nada responde, aproveito e o estimulo a não falar: “Pense, pense profundamente sobre isto que se passa aí agora, Orlando”. Tiro uns cochilos, o relógio toca, me desperta, creio que Orlando também estivera cochilando, levanta-se, despede-se e confirma o mesmo horário para a semana que vem. Agora Orlando iria para sua fábrica de cachecóis iniciar, às oito e meia, seu expediente de mandar, haveria dois ou três secretários bajuladores rindo de qualquer piada infame que Orlando fizesse, inclusive sobre mim, sobre meu consultório; talvez Orlando estava achando tudo uma droga e só viera me procurar por ter prometido a Eusébio que procuraria alguém, Orlando devia ser mais um perdulário burguês, um pouco velho, daqueles que participam de orgias cheias de champanhe importado, prostitutas e viadagens.

Sinto certo alívio ao vê-lo saindo pelo batente. Olho em minha agenda, saudades da Dona Alana, tinha mãos bonitas, unhas bem cuidadas, dedos delgados e brancos como talco, lembro deles percorrendo as páginas de minha agenda até chegar no horário do próximo paciente, depois passava o indicador por sobre o nome e me informava, como se lesse com a ponta do dedo, mãos e dedos prestimosos, um perfume doce, Dona Alana fora última coisa doce que houve em minha vida, mesmo sem nunca possuí-la, foi um erro tê-la despedido.

Meu próximo paciente só seria às dez, então volto para o interior do consultório, deixando a porta da ante-sala aberta, e olho para o teto, estava precisando de nova pintura. Não sabia o que fazer, os pacientes estavam ficando pingados em minha agenda, já tinha vendido meu carro, meus móveis mais desnecessários, minhas roupas caras, meus relógios, sapatos, só me restava o apartamento onde vivia, o outro tinha dado pra minha viúva dividir com as crianças, e a chácara da praia deixei com o caseiro, ele merecia.

Caminho duas quadras até o boteco do Seu Delano, ele me recebe com um cafezinho e uma média, agradeço e acabo comendo mesmo sem fome. “E então seu doutor, como andam as coisas?”, “Olha Seu Delano, vão nas mesmas”. Havia uns oito anos que eu tinha aquele consultório perto do bar do Seu Delano, e desde sempre eu ia até lá tomar um cafezinho, desde sempre também Seu Delano me fazia essa pergunta, o gesto de cordialidade já havia se tornado uma obra de arte, exatamente igual desde a primeira vez que pus os pés ali. Juro que pensei em tomar uma pinga, pra mudar o disco e ver como Seu Delano reagiria à esta quebra de protocolo, mas desisti, tive preguiça de incomodá-lo.

Na volta ao consultório, chuto latas, sorrio para os mendigos, lembro-me do velho sebo do Cardoso, na Rua de cima, entro e começo a folhear livros de psicologia, não tinha mais saco para ler aquilo, corro logo então para literatura, esbarro em Carlos Drummond, depois Ferreira Gullar, novamente concluo não ter mais paciência. Vou embora frustrado, nova literatura no sebo ainda não tem, só os velhos já desgastados, cresci com eles oras. Sempre que a idéia de ir até um sebo me invade a mente, penso em ler algo que me envolva, que me faça diferença, que me faça sair do sebo com um livro nas mãos me sentindo o homem mais afortunado do mundo porque naquele dia não precisaria me preocupar com algo a fazer ou algo para ocupar a mente, na verdade, isso foge do plano do pensamento e vai aos poucos conquistando o plano da quimera. Imagino meus pêlos se arrepiando, como dantes, minha mente entrando em parafuso e tendo insônia por causa do desfrute obsessivo do livro, tamanha a qualidade. Mas me desaponto, sempre; acho que o último livro realmente devastador, ou que simplesmente fez diferença, foi há uns quinze anos atrás, O Estrangeiro, do Camus, pelo menos esse é o único que me lembro.

Volto ao consultório tentando lembrar quem seria ‘Sra. Madalena’, tinha marcado para as dez horas; como havia dispensado todas as minhas anotações sobre pacientes no acesso de fúria da semana passada, teria que me recordar dela, sem ajuda, talvez fosse sua primeira consulta. Dane-se, ainda são nove e quarenta e sete e até ela chegar eu devo lembrar.