quarta-feira, maio 25, 2005

O homem do jornal de hoje.

Folheando o diário de hoje, encontrei um artigo sobre o homem magro que foi encontrado morto e nu na praça central da cidade.

Era um homem obscuro, os que o conheciam disseram que dificilmente ouviam sua voz ecoar em vão, não sabiam de onde viera, vagava pelos bares, botecos e restaurantes sujos do baixo centro pedindo restos de comida, legumes levemente apodrecidos, ou talvez até alguma carniça, o que tivesse, trocados.

Esgueirava-se pelos monumentos, pelas calçadas cheias de pó-de-vento, pelas pisadelas displicentes dos transeuntes mais preocupados em preencher suas ânsias consumistas e vagos alentos do que evitar tropeços maldosos em moribundos como Ele, de talento.

Eu sabia dele por mim para mim mesmo. A fobia social o expulsara do seio familiar, do convívio enfadonho com seus comensais de casa, era tudo um saco. Um belo dia, juntou seus mais valiosos apetrechos de vida: uma escova de dente, uma pasta, uma lâmina de barbear, um par de meias e uma cueca (além dos quais já vestia), umas bolitas (bolinhas-de-gude) da infância, uma camiseta, uma bermuda, uma calça, e Fausto, do Goethe, livro que considerava obra máxima da literatura. E foi embora, no horário que os guardas noturnos apitam pra mentir que estão acordados.

Não sabia aonde ir, vagou até o dia clarear, parou em um posto de gasolina, conversou com alguns frentistas, pediu dicas, e logo arrumou carona em um caminhão. Chegou na cidade-azul-pé-no-saco, aqui ficou, gostou do clima, achou a cidade bonita, as pessoas pareceram simpáticas, talvez isso explica.

Armou acampamento na praça do centro, não tinha trocados, não tinha mais coisa alguma, deixara tudo para a mulher e aos filhos em casa, podiam precisar, ao passo que ele precisava de mais nada. Conversou com alguns mendigos novos colegas, foram cordiais, em poucos dias trocavam afetividades e dividiam o pouco que tinham para comer.

Pedia, não se envergonhava disso; era bonito, corpo magro e esbelto, mesmo com a barba crescida por já ter enferrujado a lâmina, tinha modos de cavalheiro, apesar também de pedir desculpas por viver, costurava frases lisonjeiras às passantes mais interessantes; poder-se-ia dizer até que comprava trocados em vez de mendigá-los, com seus versos ataviados. Foi adquirindo notoriedade entre os comerciantes da cidade, até não se importarem mais em vê-lo proclamar na fachada de suas lojas. Famigerado, minha avó chegou um dia chamando-me para assistir o mendigo habilidoso que cuspia versos como aquele que fazia com o fogo em outra ocasião, na do circo. Não pude ir, estava ocupado em fazer nada, agora me arrependo.

Foi numa noite em que a polícia havia recebido denúncia de tráfico na praça, Ele dormia tranqüilo nos seus jornais, de pança cheia, recebera naquela noite um prato farto, eles vieram e pregaram bala em todos os vadios, sem distinção nem discriminação; não tinha gente, não tinha poeta versador, não tinha errante afetivo, não tinha jornal velho feito cobertor. Foi sangue com grito seco, abafado mesmo, ecoando sem jeito na madrugada desgastada, junto com o suplício centenário dos índios, junto com a falência Dele, junto com os amigos que fizera, junto com os agrados merecidos que tivera. Os gritos, por mais dor que exprimiam, eram o atestado da vida que se expiava, do descanso que procurava; Ele não mais precisaria pedir desculpas por viver, e isso o contentava.

Hoje, o primeiro gari que se arriscava a varrer o chão daquilo, viu a baderna, gritou, pediu socorro, mas ainda não tinha gente por lá. O sol foi subindo, as lojas se abrindo, o povo chegando e sucumbindo diante da barbárie inaudita na cidade-azul-pé-no-saco. Ninguém entendeu, a polícia não explicou, os amigos não choraram, pois também haviam ido; a cidade ficou chocada e as pessoas fizeram nada. Eram só mais alguns ociosos, dentre os quais se destacavam alguns malditos talentosos.

Senti perplexidade, talvez nada mais, não podia imaginar algo assim. Tão próximo e tão distante de mim. Era só um homem, o jornal dizia, que pedia licença e desculpa para viver, sempre cabisbaixo, tentando agradar alguém, qualquer pessoa que fosse, soltava seus versos ao ar, sem pretensão, sem devassidão nem ambição, estava ganhando respeito, pelo menos um prato de comida por dia recebia, ou comprava, eu diria, com seus versos sutis, cheios de magia, cheios de beleza e com nenhuma agonia, apesar dos pesares. Era só um homem doce, queria ter paz, abster-se do convívio insólito e desgastante da família, fez isso de um jeito estranho, de um jeito dele, jeito de um homem sagaz.