segunda-feira, abril 11, 2005

Crônica de uma noite azul.

Série: Escritos de guardanapo.

Uma noite quente, um pensamento agonizante sobre Wittgenstein e sua explicação para o valor dos conceitos, das palavras. Puxa, ele me fez mal, as palavras perdem o sentido, vou ter de reformula-lo, talvez criar um novo. Preciso sair de casa o mais rápido possível, me dou conta disso.
Vou para o bar do Seu Oswaldo, o velho mesmo de sempre, peço uma cerveja, uma menina estranhamente obesa senta-se ao meu lado, parecia querer falar com Seu Oswaldo, como eu faço, mas logo passa a dirigir-se a mim.
Há, também, um casal lindo jogando sinuca em uma mesa ao lado do balcão-de-bar, daqueles. Uma moça de nariz aquilino, pele delgada e branca, flertando com o pálido excessivo, cabelos longos, lisos e dourados. O rapaz é branco também, tem rosto jovial. A barba levemente esverdeada, mal-feita e rala, revela com finura sua mancebia. São belos, e o que fazem ali naquele boteco, não sei. Pergunto a seu Oswaldo sobre eles. Ele me confidencia que freqüentam há muito tempo seu bar, desde quando era na rua de cima. Diz que os dois são formados em direito, têm um escritório de advocacia no centro da cidade, e que andaram uns tempos separados, mas agora estavam casados.
Deveras fico um tanto espantado, pareciam tão jovens. Seu Oswaldo sabia de muita coisa mesmo. São tão harmoniosos que chego a imaginar algo com eles: eu e eles, uma noite dionisíaca, vinho, boa música, eu e eles. Idealizo como uma coroação, nada me apetece tanto quanto esta idéia; salvaria meus dias na cidade azul-pé-no-saco.
- Olha só, tá tendo um show de rock numa chácara na saída da cidade. Tá sabendo? – A menina obesa corta meu absorto gesto de observação do casal, com tirania estridente.
- Não, não to sabendo. Você não vai?
- Não tenho como ir. Eu e minha amiga – aponta para uma menina sentada em uma mesa com vários meninos – estamos super afins de ir.
- Como que é lá, como vai ser? – Questiono interessado.
- Cinco reais para entrar, vai ter várias bandas: blues, rock, punk rock, e até uma banda de blackmetal no fim da noite.
- Puxa, que coisa hem. Vou pensar.

Jamais imaginei uma miscelânea de bizarrices acontecendo aqui, na cidade azul-pé-no-saco. Não gosto de blackmetal, nem de punk rock, nem de coisa alguma, pra dizer a verdade, mas me seria um grande alento ver pessoas ‘piores’ do que eu, pessoas que certamente haviam de estar em um show de ‘blackmetal’. Pessoas engraçadas e confusas no turbilhão cinematográfico da vida.
- E aí Seu Oswaldo, que o senhor acha disso? Será que vai ser bom? – Invoco, humildemente, a sabedoria de alguém mais experiente.
- Olha rapaz, lá é o seguinte, vai ta cheio de nego malandro, aqueles cabeludos feios, toscos, é meio perigoso, eu não sei não, tenho um pouco de receio, parece que eles comem gente, e é esse tipo de pessoa que vai ter lá. Bom, mas vai sim, vai ter menininhas de fricote também, sabe como é: sempre tem. E acho que você se diverte, é só tomar cuidado e não esbarrar em ninguém.
- É, acho que vou mesmo. A cerveja aqui tá boa, o papo também, mas vou ver coisa estranha, vai ser divertido, no mínimo. Até outro dia. Mas, talvez eu volte aqui ainda hoje, se estiver aberto.
- Então ta bom, se cuida.

Eu, a estranha obesa, e sua amiga esdrúxula – pra não dizer estranha também – partimos para a tal chácara.

- Mas então, tenho um problema: vou ter que beber com vocês; só tenho dez, já gastei dois e cinqüenta no Seu Oswaldo, e a entrada ainda é cinco. – Revelo.
- Beleza, não esquenta.

Sim, as meninas são parceiras, penso auspicioso.

Chegamos ao inferno, uma banda até simpática toca músicas de sacanagem engraçadas. A cerveja está gelada e as meninas estranhas me proporcionam-nas sem mesquinharia. Há sim menininhas bizarrinhas, de fricote, e de todo tipo: engraçadas, fúnebres, suicidas, coloridas. Confesso que fico assombrado com a cena do mal que existe na cidade azul-pé-no-saco, dou boas risadas, e me divirto.
Gente caindo e vomitando no banheiro, gente fumando maconha em rodas, gente batendo cabeça, gente mostrando marcas nos pulsos, é isso.
Enfim, começa a banda do mal; há um telão mostrando cenas sanguinolentas e imagens deturpadas; e não consigo me desligar de um único pensamento: “a gente não vive a vida como é para ela ser vivida”. Droga, mas como é então que a vida deve ser vivida? Se tudo que a gente vive, a gente não escolhe. Qual é o jeito certo de viver a vida? Não consigo me abster destes pensamentos. Tinha visto uma menina pobre dizer isso na TV, e ali, no meio daquela celeuma, daquela música galimatias, obsessiva, que invoca o demônio, eu só consigo pensar nos dizeres da menina pobre da televisão.
Quando me situo novamente, tenho um impulso arbitrário de ir embora, as meninas estranhas não querem, digo que vou, querendo elas ou não, e que se quiserem, podem sim vir comigo. Esses impulsos são aqueles que metem um sujeito em várias encrencas, dependendo obrigatoriamente da circunstância, e não da lucidez e/ou estado de serenidade do tal sujeito. As meninas cedem por fim, e me acompanham. Uma delas, a amiga da obesa estranha, me traz um sujeito alcunhado de ‘punk’, pergunta se posso dar carona a ele. Digo que sim, contanto que fosse apenas até o bar do Seu Oswaldo. Sim, sou cuzão mesmo.
No bar do Seu Oswaldo, encontro conhecidas de outra noite, lá do bar mesmo. Há uma mulher de uns trinta anos entre elas, senta-se ao meu lado, começa a me fazer perguntas indiscretas. Sinto-me constrangido, peço licença, levanto e sento no balcão-de-bar junto de Seu Oswaldo, novamente. Converso com ele, que me pergunta sobre o show ‘trash’; ri de mim, rio também e digo que foi engraçado, divertido. Ele é camarada, me oferece uma cerveja de cortesia dizendo entender o porque de eu ter saído da mesa das ‘meninas’, ou piranhas famintas, como ele mesmo diria.
Termino a cerveja, levanto e volto até a mesa das piranhas famintas, apenas por gentileza, falo qualquer bobeira com elas sobre Beatles, não sei muito, falo tudo o que sei. O tal do ‘punk’ se chama Douglas, veio de uma cidade distante, nos confins do estado, e pequena, muito menor do que a cidade azul-pé-no-saco. Douglas diz que está feliz por estar ali conosco, ele é conciso, sabe dizer somente o que é preciso. Digo que fico feliz, também, por ele se sentir à vontade. Logo, a amiga estranha da obesa o beija, algo interminável, as outras riem banalizando o gesto. A moça dos trinta anos põe suas mãos sujas em minha coxa esquerda, olho atônito para ela que me sorri com devassidão. Concluo que já estou na mesa, por gentileza, há tempo demais. Já é tarde. Peço licença, despeço-me de todos, e vou embora.
No caminho, a cabeça começa a ribombar, bebi demais, penso. Mas também com a cerveja gratuita e gelada, não tinha como controlar, me justifico. Chego a pensar na comicidade de como manipulamos nossas vidas, sempre nos mutilando, nos afligindo, flertando com situações embaraçosas, e muitas vezes desnecessárias. É um grande espetáculo tragicômico, e sou capaz de pensar nisso, não sei se é bom ou ruim, ao passo que as coisas boas ou ruins deixaram de me existir. O desfecho é trágico e o enredo cômico. É disso que gosto. Aproveito o passeio filosofal pelas ruas da cidade azul-pé-no-saco – e não vou me cansar de repetir isso – para testar meu carro velho, tinha acabado de sair de uma longa semana na oficina. A droga do carro velho nunca ficava bom, todo mês passava uma semana na oficina, e nunca ficava bom. As ruas da cidade azul-pé-no-saco assumem um aspecto grave durante a madrugada. As aglomerações de pessoas se focalizam em pouquíssimos lugares, deixando todo o resto da cidade vazio, todo o resto para mim, como se fosse um presente divino, ou melhor: apenas uma concessão. Deuses não presenteiam mortais. Passeio sem acelerar, penso naquilo tudo, penso que tudo está para se acabar, penso que as coisas são assim mesmo, penso que talvez vivo a vida como ela deveria ser vivida, e isso me faz bem. Vou para casa, e durmo como há muito não dormia.