quinta-feira, abril 21, 2005

João.

João precisa de um dia sem igual, um dia ativo, movimentado, não mais esses dias passivos que não cessam em lhe incomodar. Sai de casa às duas da madrugada, pensa apenas em tomar uma cerveja e ver gente estranha pela rua, mas não é tão simples assim, toda ruptura de cotidiano implica em acontecimentos insólitos e imprevisíveis.

Vive em uma rotina seqüencial, os dias perfilam-se equivalentes e eqüidistantes em seu calendário pessoal abstrato. Toda ruptura acarreta danos, insisto.
Vai até o bar, pede uma cerveja, pergunta qualquer tolice ao dono, que lhe responde seco, porém com certa condescendência. É incrível, mas os bons donos de bar sempre tratam bem os perdidos da noite, sempre. João pondera que já são quatro da madrugada, era um dia simples, terça-feira para qualquer cristão trabalhador, para ele não. Para ele era apenas mais um dia, como todos os outros. A cara já está cheia de cerveja, já pode ir embora tentar dormir em paz.
No dia seguinte, João acorda ao meio-dia, com a cabeça badalando todos os sinos da igreja matriz, já estava acostumado. Almoça, toma banho, e senta-se em sua cadeira de varanda para ler o diário. Nada além de muita baboseira, exceto uma notinha quase no rodapé do caderno cidades: “Mulher de quarenta anos se enforca em frente a filha”. Fica feliz por encontrar algo interessante nas folhas daquele chinfrim e cristão diário provinciano. A mulher tinha se enforcado, segundo o jornal, por causa de dívidas. Ela morava com a filha em uma quitinete um pouco distante do centro da cidade, havia apenas quarto e banheiro. Após chorar muito, a mãe pediu que a filha fosse brincar fora do quarto com as amiguinhas, pois tinha de se concentrar em um trabalho sério. A menina tinha nove anos, chamou as amiguinhas, brincaram alguns minutos, e voltou até seu quarto-com-banheiro para pegar algumas bonecas, a fim de incrementar a brincadeira. A mãe estava roxa pendurada por uma corda que se ligava as vigas do teto. A menina entrou em colapso, teve um treco.
João fica conjeturando longas horas acerca do futuro desta menina, para onde iria, com quem ficaria, que traumas lhe afligiriam, se se tornaria crente daquelas que não depilam as axilas; e também as ‘tais’ dívidas da mãe, se devia a algum agiota que por ventura lhe ameaçara de morte, se tinha um romance falido. A mente era mesmo um estopim para explodir a monotonia, e por alguns momentos João a esquece.
Às dezenove horas, após ler o mensário de cultura, o mensário político-econômico, o semanário de variedades, o diário brega, alguns compêndios de filosofia, e uma peça do degeneradamente doce Nelson Rodrigues, resolve descansar. João senta-se com a TV; ela, como de hábito, não lhe diz nada. Desliga-a e tenta com o rádio, só barulho descartável e notícias sensacionais sem apelo, se é que é possível. Deita-se em sua cama, pensa na vida, no que fazer do futuro, na sua liberdade incondicional dentro da redoma planeta terra. Sua vontade mesmo é poder escolher viajar pelos confins ilimitados do universo, é vagar como poeira cósmica pelo além, entrar em um buraco negro daqueles e ver no que ia dar. João não agüenta mais ter de pensar uma profissão, ter de agüentar a vida insípida que leva ou então ter de se aventurar por um mundo pequeno, já todo conhecido, mapeado, catalogado, registrado, descoberto. O planeta estava se tornando para ele cada vez mais um ambiente claustrofóbico.
João pára de sentir suas pernas, o infinito se dissolve diante de suas órbitas incrédulas. Tudo parece vago, imenso, sem fim. João chora, chora como uma criança que nunca saiu do bairro que envolve sua casa, ao ver uma cidade grande. O sonho que tanto sonhara agora lhe aflige, pensa em sua mãe, mas não dá, seu buraco-de-minhoca vai conduzindo-lhe tenuamente pelas veredas inexistentes do universo. Vê os buracos negros que tanto sonhara, vê marte, júpiter, reverencia todos os astros que por ele passam; nunca João fora tão gentil, cordial e afetuoso como agora; nunca dera tanto valor aos ensinamentos de conduta social da mãe, como agora, como faz com os astros.
Sente-se como que puxado por uma corda, abre os olhos e vê os estrados da cama de cima, onde o irmão dormia na beliche do quarto. Está suado, com o corpo indolente. Após alguns instantes de reativação da circulação, levanta-se, espreguiça-se, confirma no relógio o horário de onze e meia da noite, e vai tomar banho. Talvez hoje, saindo mais cedo, algo diferente venha a acontecer, pensa com frouxa esperança.
A mãe pergunta-lhe se quer comer um bife com purê de batatas, diz que está muito magro, João pede apenas uma cerveja ao pai, que as conservava meticulosamente na geladeira. Sede saciada, conversa nenhuma iniciada, apenas palavras esparsas perdidas e desavisadas, e pronto, a atmosfera que vai reger João esta noite já está anuviada.


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Passa pelas ruas de seu bairro, bares, boates, casas noturnas de toda a espécie enchem-se de pessoas, ele anda do outro lado da rua, apenas visitando com seus olhos indiferentes toda aquela verdade da noite. João não compreende muito bem aquilo tudo, não vê razão, motivo. Ele sabe, como que se por convenção, de que jovens como ele devem-se se comprimir em locais insalubres e fechados, sabe que devem encher a cara de bebida e de drogas das mais variadas índoles, das mais variadas espécies e objetivos, sabe que o mundo é assim, sem sentido, ou uma busca constante por ele, pelo sentido.

João avista conhecidos da faculdade sentados em uma mesa, conversam felizes, riem, gargalham, João sente-se atraído pelo entusiasmo dos amigos, aproxima-se, é bem acolhido, pede um copo, e junta-se à roda de cerveja.
O bairro era movimentado. Por momentos, João consegue se perder com a celeuma instaurada na atmosfera, há muitos bares no derredor, muita gente falando, muito barulho, músicos cantando. É como se todos fizessem um esforço sobre-humano para serem ouvidos, escutados; ninguém que ficar sem a atenção, é uma competição, como em várias outras esferas da vida humana: várias competições.
João, de repente, se sente deslocado, nota que não tem a mesma fluidez para as palavras orais como seus colegas de mesa, todos falam, gesticulam, invocam deuses, aludem e reverenciam artistas, João não compreende, nada faz sentido, ele saíra de casa apenas para tomar uma cerveja, e talvez apertar alguma bunda, e de repente se via ali, incomodado, insatisfeito, aflito.
Levanta-se de súbito, despede-se de todos, diz que tem de acordar cedo no outro dia, e sai do bar pedindo uma cerveja para o garçom. Sente-se feliz por morar em um bairro onde pode caminhar sozinho e despreocupado pela noite, o bairro é movimentado, bem-frequentado. João pensa, não se cansa, toma toda a sua cerveja, dá uma ou duas voltas em um mesmo quarteirão, e resolve ir para casa. Mais uma vez, nada faz diferença.