quinta-feira, maio 05, 2005

Antigo aquário.

Agora que estou de fora, ou melhor, estou em outro aquário, é que posso ver o quanto deturpávamos a verdade e infligíamos a razão. Tudo se mostra claro como nunca sob minhas órbitas já ofendidas pelas labaredas daquele mundo antigo.

Trabalhei há algum tempo com uma garota viciada em Cocaína, ela fazia vários malabarismos com os clientes e os produtos da loja para que sobrasse dinheiro no caixa, todos os dias isso rendia de cinqüenta a oitenta reais. Não fico fora disso, sabia e ajudava o mínimo necessário e ela repartia comigo os lucros. Todos os dias, ao final do expediente – às vinte e duas horas -, Orlando vinha vender-lhe pó. Era um senhor de uns cinqüenta anos, disfarçava-se de cliente – último cliente do dia - e vinha com os papelotes. Eu ficava sempre de fora, apesar da insistência de Tina, esse era o nome dela.

Após três semanas trabalhando juntos, eu e Tina, e muita amolação dela e de outros colegas das outras filiais nas quais eu já havia trabalhado, comecei a sair com o pessoal. Tina, após pegar seu papelote diário com Orlando, fechava a loja, mandava-me fechar o caixa, pegava a capa do filme que mais gostava – Donnie Darko – e estendia uma tripla carreira sobre esta superfície, ao som da trilha sonora do mesmo filme que inclui Echo & The Bunnyman e Gary Jules. Gostava disso, era um rotina de fechamento de loja diferente das outras nas quais já havia trabalhado. Depois que dava as três fungadas mágicas da dissolução, Tina começava a transbordar toda a sua blenorragia verbal; contava-me coisas de sua infância, falava de seus amigos, relacionava-me suas vicissitudes, encerrava aforismos e os mastigava com magniloqüência invejável para uma cheirada; e tudo isso naquele frenesi peculiar dos cocainômanos.

Então, neste dia do após três semanas com Tina, saí com o pessoal. Fomos, à princípio, a uma chopperia; achei que tomaríamos uns choppes e depois tudo se acabaria por si ali mesmo. Que nada, foi só o começo de um vôo vertiginoso pela noite, bebi muitos choppes, fiquei muito entorpecido, e acho que acrescentaram algo em minha bebida. Sabia de carros velozes, via gente estranha, via casas e decorações estranhas, luzes demais, e é tudo que lembro.

O que aconteceu depois da chopperia só pude recobrar através de flashes elípticos, que no dia seguinte atormentaram minha consciência causando-me uma severa ressaca moral.

Tina mudou-se da cidade frenesi, foi para uma cidade fria do sul do país. Dentre os outros ex-colegas, vários mudaram de cidade, outros mudaram de emprego, alguns se tornaram transexuais seguindo a onda do momento, um deles morreu numa trágica batida policial na boca onde pegava seu fumo, e outros nem sequer sei o que fazem da vida. Enquanto eu estou aqui, confortavelmente enfadado na cidade azul pé-no-saco, prestes a sofrer uma revolução.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

ei, que seria da vida sem essas loucas experiências? por que não vez ou outra andar de mãos dadas com lado perverso da vida e sair com ela por aí? mas sem ressaca moral.

ótimo texto

é isso!

4:38 PM  

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