sábado, abril 30, 2005

O caso da Madalena.

Só se ouvia gritos, vozes, e a celeuma;
O céu estava negro chumbo, denso;
Os pássaros gorjeavam canções lúgubres;
Tudo adivinhava, e a agonia se avizinhava,
Tomando partido através dos silvos do vento insalubre.

Não fez muita diferença;
João resignou-se como quem está disposto,
Disposto ao inferno enfrentar;
E ele viria sim, não falharia em despertar.

Veio com Madalena, dentro de seu vestido vermelho;
O decote lhe mostrava as comissuras íntimas dos seios;
João nervoso ficava, só de assim ver seu fogo;
Madalena era mulher matreira, velhaca sutil e safada.

Veio Madalena para João contar,
Que dele não queria nem mais o olhar,
E não precisava gritar, bater, e nem chorar,
Pois sua atitude em nada ia mudar.

João explodiu, e a cólera lhe arrebatou,
Madalena temeu, fremiu, mas de nada adiantou,
Pois João mesmo assim a faca lhe penetrou.

Madalena era vermelha, com o vestido vermelho,
O sangue era rubro, e no vestido encontrava seu espelho,
Escorria, jorrava, e Madalena agonizava,
João não entendia, porque aquilo fazia.

Madalena por fim, algumas palavras ainda cuspiu,
Disse que João era um porco, abjeto, nojento e vil,
Disse também que nunca o amara,
E que ela sempre o enganara,
João mais irado e triste ficou,
E a faca mais profundo no peito lhe enfiou,
Madalena no leito viscoso da morte, chorou,
E no último suspiro ainda frisou,
Que Adonias fora quem sempre amou..

Adonias era amigo do João,
Amigo do João bundão,
O João bundão que de Madalena furou o coração.

João percebeu então,
Que seu mundo havia ficado sem chão,
Sua agonia toda tinha sido em vão,
E que Adonias não ia matar,
Ia matar agora,
Era o bosta do João.

sexta-feira, abril 29, 2005

Vó Caçula.

A velhinha é uma vivente de talento mesmo, chegou aqui ontem e não me deixou sossegado, contou cada estória cabeluda, outras engraçadas, uma vida e tanto. Ela não se cansa de relatar mortes escalafobéticas, assassinatos por causa de garimpo de diamantes, acidentes bizarros.

Meu bisavô era comerciante de diamantes, vivia viajando dos garimpos do Mato Grosso pro Rio de Janeiro, a fim de vender por melhores preços suas preciosidades. Diz ela, que ganhou muito dinheiro com isso, tinham avião e tudo mais. Meu bisavô adorava cinema e teatro, teve um tempo que nem compensava mais tanto assim vender os diamantes no Rio, havia muita despesa com a viagem, e já havia compradores em Uberlândia - cidade mais próxima que o Rio - que pagavam quase tão bem quanto lá. Mesmo assim, meu bisavô insistia em suas viagens quinzenais ao Rio. Assim que chegava, fazia seus negócios no mesmo dia e passava outros três ou quatro perambulando pela Confeitaria Colombo, Teatro Municipal, Cinemas dos quais ela não se lembra o nome, e demais passeios. Ela – minha bisavó - nem sempre o acompanhava, mas quando não ia, meu bisavô contava-lhe tudo pormenorizado, inclusive resenhava oralmente as peças e os filmes que tinha visto. Minha bisavó era muito apaixonada por ele mesmo, relembra o passado com os olhos – já quase cegos – brilhando. E nunca prescinde de tecer copiosos elogios ao meu bisavô.

Homem ardiloso. Conta ela que certa vez, meu bisavô acabou fazendo um mau negócio, comprou por quarenta contos de réis um diamante que virou buzo. Diamante virar buzo era um diamante com algum defeito, e que a especulação de outros compradores queimava-lhe o preço. Meu bisavô, não notando o pequeno defeito, e estando desinteirado de informações sobre aquele diamante buzo, acabou pagando essa fortuna, valor que talvez ele até valesse mesmo, mas que nenhum outro comprador pagaria, simplesmente por já estar ‘queimado’, ou outro comprador já ter oferecido valor muito inferior. Quando se atinou do prejuízo que tomava, correu logo para amenizar os danos. Levou o diamante para ser lapidado no Rio, em um conhecido dele, e fez desse diamante dois anéis de brilhante. Um deles, em seu retorno ao Mato Grosso, foi vendido por trinta contos de réis para a mulher do sacana que tinha lhe passado o mesmo diamante, pois ele já estava feito em anel, bonito, trabalhado, valia esse preço, e ela não sabia que era o antigo diamante buzo. O outro anel de brilhante – metade do antigo diamante buzo - foi apostado em uma eleição para prefeito na cidadezinha onde viviam – Tesouro -, em troca de um caminhão de fumo. Meu bisavô ganhou a aposta e levou o caminhão de fumo para seu bolicho (bolicho era tipo mercearia que vendia de tudo; meu bisavô para diversificar a sua economia, tinha de tudo, inclusive um bolicho). Conta minha bisavó, que esse fumo ganho na eleição durou por uns dois anos no bolicho, tamanho era a quantidade de fumo. Conta também, as ‘narquias’ – como ela diz – que meu tio-avô fazia para vender esse fumo a um tal de Antônio Piçarra. Seu Tonho Piçarra não gostava desse apelido, e onde ouvia alguém lhe chamar assim, distribuía toda a sorte de ofensas e xingamentos cabeludos. Meu tio-avô, ainda garoto e funcionário do bolicho, vendia-lhe fumo dizendo: “Chega mais seu Tonho, aqui tem fumo do bom e do melhor, e aqui a gente não desrespeita o senhor chamando de Tonho Piçarra. Esse povo não vê o quanto esse nome Tonho Piçarra é feio”. E assim lhe vendia o fumo, repetindo o tempo todo a ofensa. E seu Tonho Piçarra dizia: “Eu chego mesmo, pois só aqui que eu sou respeitado, nunca mais vou comprar noutros bolichos, o povo fica só troçando de mim. Esses menino do Seu Otávio é que são menino bom, respeitadô, educado”.

Feliz da vida, meu bisavô, em outra oportunidade, apostou novamente o anel de brilhante, do antigo diamante buzo, com um sujeito que tinha um casebre na ponta de uma rua. Ganhou novamente. O casebre ficou fechado por algum tempo, até que surgiu um senhor que vivia em uma fazendinha e queria uma casinha na cidade para poder se mudar e levar os filhos ao colégio, pois já estavam crescidos. Meu bisavô, então, trocou com ele o casebre por boa parte de sua terra. Nessa terra, meu avô – filho do meu bisavô – construiu um ranchinho onde ia passar os fins de semana com minha avó. Gostou tanto de lá, que acabaram se mudando. Depois de algum tempo, minha avó se cansou, meu avô conseguiu um emprego bom em uma cidade distante, mudaram-se então, e o ranchinho foi se deteriorando com o tempo. Esses dias, meu avô vendeu a terra do ranchinho, que era chamado de fazenda Água suja, ou fazenda Veneza – há divergências na família – e mandou-me alguma quantia, de presente. E hoje, eu ouvi toda essa estória, sem querer, da boca de oitenta e quatro anos da minha bisavó saudosista.

domingo, abril 24, 2005

Soneto de Guardanapo.

À noite, na rua, em carros velozes pela cidade;
Luz, ela é bela, me comove;
Ela é doce, me contento, e é assim,
Mas sempre me esqueço.

Num canteiro de avenida, eu a desejo, doce, dourada;
Eles só querem transar, mas Columbina me faz esquecer;
Eu só a quero para mim, assim, despida de carne, só ela,
Mas Columbina me faz pensar.

E o sol já ia alto, brigando e expulsando os boêmios da rua;
Era a sua vez de reinar, firme, majestoso, doído;
Substituindo os velhos melindres, do asfalto cinza.

A noite já dia tinha de continuar, mas preferiu findar;
E eu ébrio, de encantos por Columbina,
Não conseguia terminar, o último gole daquela menina.

quinta-feira, abril 21, 2005

João.

João precisa de um dia sem igual, um dia ativo, movimentado, não mais esses dias passivos que não cessam em lhe incomodar. Sai de casa às duas da madrugada, pensa apenas em tomar uma cerveja e ver gente estranha pela rua, mas não é tão simples assim, toda ruptura de cotidiano implica em acontecimentos insólitos e imprevisíveis.

Vive em uma rotina seqüencial, os dias perfilam-se equivalentes e eqüidistantes em seu calendário pessoal abstrato. Toda ruptura acarreta danos, insisto.
Vai até o bar, pede uma cerveja, pergunta qualquer tolice ao dono, que lhe responde seco, porém com certa condescendência. É incrível, mas os bons donos de bar sempre tratam bem os perdidos da noite, sempre. João pondera que já são quatro da madrugada, era um dia simples, terça-feira para qualquer cristão trabalhador, para ele não. Para ele era apenas mais um dia, como todos os outros. A cara já está cheia de cerveja, já pode ir embora tentar dormir em paz.
No dia seguinte, João acorda ao meio-dia, com a cabeça badalando todos os sinos da igreja matriz, já estava acostumado. Almoça, toma banho, e senta-se em sua cadeira de varanda para ler o diário. Nada além de muita baboseira, exceto uma notinha quase no rodapé do caderno cidades: “Mulher de quarenta anos se enforca em frente a filha”. Fica feliz por encontrar algo interessante nas folhas daquele chinfrim e cristão diário provinciano. A mulher tinha se enforcado, segundo o jornal, por causa de dívidas. Ela morava com a filha em uma quitinete um pouco distante do centro da cidade, havia apenas quarto e banheiro. Após chorar muito, a mãe pediu que a filha fosse brincar fora do quarto com as amiguinhas, pois tinha de se concentrar em um trabalho sério. A menina tinha nove anos, chamou as amiguinhas, brincaram alguns minutos, e voltou até seu quarto-com-banheiro para pegar algumas bonecas, a fim de incrementar a brincadeira. A mãe estava roxa pendurada por uma corda que se ligava as vigas do teto. A menina entrou em colapso, teve um treco.
João fica conjeturando longas horas acerca do futuro desta menina, para onde iria, com quem ficaria, que traumas lhe afligiriam, se se tornaria crente daquelas que não depilam as axilas; e também as ‘tais’ dívidas da mãe, se devia a algum agiota que por ventura lhe ameaçara de morte, se tinha um romance falido. A mente era mesmo um estopim para explodir a monotonia, e por alguns momentos João a esquece.
Às dezenove horas, após ler o mensário de cultura, o mensário político-econômico, o semanário de variedades, o diário brega, alguns compêndios de filosofia, e uma peça do degeneradamente doce Nelson Rodrigues, resolve descansar. João senta-se com a TV; ela, como de hábito, não lhe diz nada. Desliga-a e tenta com o rádio, só barulho descartável e notícias sensacionais sem apelo, se é que é possível. Deita-se em sua cama, pensa na vida, no que fazer do futuro, na sua liberdade incondicional dentro da redoma planeta terra. Sua vontade mesmo é poder escolher viajar pelos confins ilimitados do universo, é vagar como poeira cósmica pelo além, entrar em um buraco negro daqueles e ver no que ia dar. João não agüenta mais ter de pensar uma profissão, ter de agüentar a vida insípida que leva ou então ter de se aventurar por um mundo pequeno, já todo conhecido, mapeado, catalogado, registrado, descoberto. O planeta estava se tornando para ele cada vez mais um ambiente claustrofóbico.
João pára de sentir suas pernas, o infinito se dissolve diante de suas órbitas incrédulas. Tudo parece vago, imenso, sem fim. João chora, chora como uma criança que nunca saiu do bairro que envolve sua casa, ao ver uma cidade grande. O sonho que tanto sonhara agora lhe aflige, pensa em sua mãe, mas não dá, seu buraco-de-minhoca vai conduzindo-lhe tenuamente pelas veredas inexistentes do universo. Vê os buracos negros que tanto sonhara, vê marte, júpiter, reverencia todos os astros que por ele passam; nunca João fora tão gentil, cordial e afetuoso como agora; nunca dera tanto valor aos ensinamentos de conduta social da mãe, como agora, como faz com os astros.
Sente-se como que puxado por uma corda, abre os olhos e vê os estrados da cama de cima, onde o irmão dormia na beliche do quarto. Está suado, com o corpo indolente. Após alguns instantes de reativação da circulação, levanta-se, espreguiça-se, confirma no relógio o horário de onze e meia da noite, e vai tomar banho. Talvez hoje, saindo mais cedo, algo diferente venha a acontecer, pensa com frouxa esperança.
A mãe pergunta-lhe se quer comer um bife com purê de batatas, diz que está muito magro, João pede apenas uma cerveja ao pai, que as conservava meticulosamente na geladeira. Sede saciada, conversa nenhuma iniciada, apenas palavras esparsas perdidas e desavisadas, e pronto, a atmosfera que vai reger João esta noite já está anuviada.


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Passa pelas ruas de seu bairro, bares, boates, casas noturnas de toda a espécie enchem-se de pessoas, ele anda do outro lado da rua, apenas visitando com seus olhos indiferentes toda aquela verdade da noite. João não compreende muito bem aquilo tudo, não vê razão, motivo. Ele sabe, como que se por convenção, de que jovens como ele devem-se se comprimir em locais insalubres e fechados, sabe que devem encher a cara de bebida e de drogas das mais variadas índoles, das mais variadas espécies e objetivos, sabe que o mundo é assim, sem sentido, ou uma busca constante por ele, pelo sentido.

João avista conhecidos da faculdade sentados em uma mesa, conversam felizes, riem, gargalham, João sente-se atraído pelo entusiasmo dos amigos, aproxima-se, é bem acolhido, pede um copo, e junta-se à roda de cerveja.
O bairro era movimentado. Por momentos, João consegue se perder com a celeuma instaurada na atmosfera, há muitos bares no derredor, muita gente falando, muito barulho, músicos cantando. É como se todos fizessem um esforço sobre-humano para serem ouvidos, escutados; ninguém que ficar sem a atenção, é uma competição, como em várias outras esferas da vida humana: várias competições.
João, de repente, se sente deslocado, nota que não tem a mesma fluidez para as palavras orais como seus colegas de mesa, todos falam, gesticulam, invocam deuses, aludem e reverenciam artistas, João não compreende, nada faz sentido, ele saíra de casa apenas para tomar uma cerveja, e talvez apertar alguma bunda, e de repente se via ali, incomodado, insatisfeito, aflito.
Levanta-se de súbito, despede-se de todos, diz que tem de acordar cedo no outro dia, e sai do bar pedindo uma cerveja para o garçom. Sente-se feliz por morar em um bairro onde pode caminhar sozinho e despreocupado pela noite, o bairro é movimentado, bem-frequentado. João pensa, não se cansa, toma toda a sua cerveja, dá uma ou duas voltas em um mesmo quarteirão, e resolve ir para casa. Mais uma vez, nada faz diferença.

Uma noite inefável na vida de um alguém.

Os cabelos caíam-lhe negros e volumosos pela fronte, escondendo os tão belos olhos. Eu já estava embriagado, no alto das quatro horas da madrugada. Ela sentada no sofá da sofisticada casa noturna, os pés descalços pendendo nus de cima das almoçadas de couro negro do suntuoso sofá. Meus olhos desacreditaram, e depois se sentiram contemplados pelos deuses estetas da beleza humana. Aproximei-me, pessoas se amontoavam ao seu redor, pessoas, não soube quem eram, só via a cabeça dela recostada nas almofadas superiores do sofá, triste, e com os cabelos a tamparem-lhe a fronte.
Num lampejo, já me vi ali, inteiramente seduzido, sentado ao seu lado. E num gesto impetuoso de magnetismo, passei-lhe minhas mãos com diligência por sobre a cabeça. Ela se manteve inerte, senti-me seguro e prossegui com os afagos, cada vez mais ternos, cada vez mais castos. Eu encerrava toda a minha atenção naquele gesto, naquela cena, naquela imagem da menina triste, com os cabelos escondendo-lhe a fronte, e minhas mãos a afaga-la.
Algo aconteceu e despertou a bela menina, que aproximou-se mais de mim, aninhou-se em meu ombro esquerdo e perguntou meu nome. Arthur, respondi-lhe, se não quiser falar-me o seu, não me importo. Isabelle, por que não falaria meu nome? Você me é tão gentil.
Seus olhos brilhavam enquanto me proferia tais palavras. Sua voz era aveludada, nunca ouvira uma voz tão profunda e sedutora. No mesmo instante, imaginei, em flashes, aquela garota em um cabaré francês do início do século vinte cantando canções envolventes, com aquela voz aveludada. Confesso que parecia-me mais menina do que concluí que fosse quando ouvi-lhe a voz. Mas isso apenas agravava seus encantos.
Deu-me um beijo úmido e viscoso na bochecha, e pediu-me algo para beber, estava com sede, poderia ser água, ou um refrigerante.
Com grande zelo dirigi-me até o bar e pedi a encomenda. Quando notou meus modos gentis, sorriu-me copiosamente. Desabei em ternura e encantos. A garota era muito mais do que eu precisava.
Acabo de romper com meu namorado, disse-me, ele é um babaca. Combinamos de nos ver aqui, atrasei um pouco em função de alguns contratempos em casa e, quando cheguei, vi-o aos beijos com uma de minhas amigas. É deprimente, desde então estou aqui, arremessada no limbo lastimável deste sofá., entregou-me estas palavras sem evitar as lágrimas. Olhei-a complacente, fiz-lhe um afago mais quente, e disse-lhe para que não se preocupasse, pois o tempo passaria e a ferida convalesceria.
Num súbito, um tanto intempestivo, beijou-me a boca, já eram seis da manhã e eu estava ali a acarinhar-lhe e ouvir suas palavras de voz aveludada, já sabíamos o suficiente um do outro, e a noite precisava de um beijo para ser selada. Quando interrompeu o beijo, disse-me que havia esquecido o namorado, que eu estava dentro dela à partir daquele momento, e que me ligaria mais tarde. Passei-lhe o número, beijei-lhe a testa com um muxoxo seco, disse-lhe novamente que não se preocupasse, e fui embora contente, após dar uma olhadela para seu sorriso já convalescente.

domingo, abril 17, 2005

Nú.

Passos lassos, as ruas já apagadas, Sebastião só pensa na vitória, na vitória que é ser um perdedor. Ao menos tem um trunfo, oferecer belas palavras em troco de esmolas na calçada da praça suja.
Marco Aurélio gosta de moças que nunca lamberam um cacete, ele as ensina com lisura, é paciente, e elas aprendem, como boas alunas.
Ulisses viaja à toa pelo mundo, o pai é milionário. Levava uma vida de playboy, só academia, boates caras e muita bebida, bomba, e drogas. Ulisses precisava tomar um jeito, fôra preso diversas vezes. O pai meteu-lhe uma mochila nas costas, garantiu-lhe uma mesada de dois mil e quinhentos dólares, e mandou o filho correr o mundo. Brigão, bundão e idiota como é, não sei se vai dar assim tão certo.
Orlando constrói casas, é um pedreiro. Tudo que mais gosta de fazer é chegar em casa, às seis horas da tarde, todo suado, e comer sua mulher. Ela gosta também, diz que não, briga, mas no fim adora o corpo suado e sujo do Orlando pedreiro.
Nathália vive em academias, como Ulisses. É daquelas que sai de quinta a domingo, bebe bastante e dá pro primeiro mané que surge em sua frente. É uma vadia. Agora está aí, grávida. O pai quis deserdá-la. Mas a mãe não deixou. Coitado do menino, Nathália ainda não tomou jeito, e desde já vem dizendo que é só o menino desmamar pra ela voltar pra vida louca; a mãe que se vire com o garoto.
É senhores, tudo não passa de repetição.

quinta-feira, abril 14, 2005

A vez do momento; do caso sem alento.

Isabela quer Pedro;
Quer que Pedro a pegue em casa,
escondido dos pais, a leve para a noite,
Quer que a beije, a afague, e a encha de afeto,
aquele mesmo que se mostra incompleto.
E Pedro faz,
Pega-a com seu carro velho,
e a leva escondido de seus pais,

Pedro é ébrio, demais por ausente,
Isabela sonha, vê na noite a glória,
A glória do amor com Pedro,
O mesmo Pedro inconseqüente.
Por que te pego assim, Isabela?
Vou escondido de meus pais, Pedro.
Pedro bebe, Isabela não, Pedro não se importa.
A noite é agitada.
Outrora, Pedro tentou persuadir Isabela, em vão,
Que não quis, justificou não sendo arrazoado,
Disse que tinham amizade sólida, não podiam,
Não deviam, e não queria desmanchar até então;
Pedro nem tanto se importou,
Não fez tanta falta assim,
Logo acabou nos braços de outra uma,
Uma outra qualquer por aí.
Mas agora, Isabela esta de volta,
Lá dos confins do outro mundo,
Veio pra cá de onde mora,
Para a Pedro recobrar o passado,
Do amor, para ele, já atrasado.
Pedro não chorou, da outra vez,
foi normal;
Já Isabela, por demais meditou,
naquela outra vez,
Pois afinal,
Pedro era sim bom moço,
Moço bom-bonito-belo e elegante,
Por que não com Pedro ficar algum instante?
Agora já é noite agitada,
Pedro já vai alto,
em sua embriaguez,
Isabela sonha,
Acometida agora de certa sensatez,
Pedro também quer,
Mas não perde mais seu tempo.
Pedro sai da roda,
Diz que vai buscar uma bebida,
Isabela lamenta um pouco,
De Pedro a pequena escapulida.
Isabela então se prepara,
Para Pedro abordar,
Com sutilezas e sem máscaras,
O velho-amor lhe recobrar.
Pedro no caminho, desanda, desatina,
Encontra outra menina,
Com jeito de bailarina, e lábios de nectarina;
É essa a Setembrina,
Que lhe roga um gole da pinga,
Daquela velha dolorida,
E um pouco embrutecida.
Pedro não se importa,
pois alto mesmo já ia,
Depois a moça suspira,
Dizendo que não se satisfaz,
Talvez um beijo lilás,
Ou quem sabe um abraço mordaz.
Pedro não se surpreende,
Pois já estava mesmo,
Era longe demais.
Um beijo furtado não é nada.
Para a agonia de Isabela,
É tudo e algo mais.
Para o deleite de Setembrina,
É só mais um beijo que se faz.
O que Pedro não sabe,
É a dor da Isabela menina.
Pedro se faz mole,
Um bobo-bobão inerte;
Setembrina lhe pega pelos cabelos,
E Isabela se rói pelos cotovelos.
Pedro nada sente,
Só pudores de Isabela,
que faz como que nada fosse,
assim tão importante para ela.
Setembrina é desleixada,
Vil, infame e ocre,
Como a velha água-doce.
Pedro se arrepende,
Do tempo perdido com Setembrina.
E o que ele ainda não sabe,
É dos ciúmes da Isabela menina.
Isabela disfarça as lágrimas,
O resto da noite é tenso,
Pedro não entende,
Mas mesmo assim lhe cede seu lenço;
Pedro leva-a para casa,
escondido de seus pais,
Isabela adormece,
E então a mágoa se perfaz.
Triste pela noite,
A mão no coração,
Triste por Pedro,
Triste pela vida,
E pela fuga em vão.
E Pedro não entende,
Vai embora carente,
Pensa em Isabela,
Vislumbra a baboseira já póstuma,
Podia ter sido indulgente.
Isabela inclina suas lágrimas doces,
De dama com intenções nubentes,
Desfalecidas pela maldade,
De Setembrinas impertinentes.
Pedro de seu leito, já sóbrio,
Responde-lhe com lágrimas ternas,
Lágrimas de algodão,
Lágrimas tardiamente condescendentes.
Pedro se vê só e vazio,
Na multidão de rostos indolentes,
Que configuram suas mais altas orgias,
Dionisíacas, exaltadas e incongruentes.
Pedro agora dorme,
Isabela também,
Talvez o mundo já não mais possa,
Deleitar esse casal inocente.

Tiago Muzulon.

segunda-feira, abril 11, 2005

Crônica de uma noite azul.

Série: Escritos de guardanapo.

Uma noite quente, um pensamento agonizante sobre Wittgenstein e sua explicação para o valor dos conceitos, das palavras. Puxa, ele me fez mal, as palavras perdem o sentido, vou ter de reformula-lo, talvez criar um novo. Preciso sair de casa o mais rápido possível, me dou conta disso.
Vou para o bar do Seu Oswaldo, o velho mesmo de sempre, peço uma cerveja, uma menina estranhamente obesa senta-se ao meu lado, parecia querer falar com Seu Oswaldo, como eu faço, mas logo passa a dirigir-se a mim.
Há, também, um casal lindo jogando sinuca em uma mesa ao lado do balcão-de-bar, daqueles. Uma moça de nariz aquilino, pele delgada e branca, flertando com o pálido excessivo, cabelos longos, lisos e dourados. O rapaz é branco também, tem rosto jovial. A barba levemente esverdeada, mal-feita e rala, revela com finura sua mancebia. São belos, e o que fazem ali naquele boteco, não sei. Pergunto a seu Oswaldo sobre eles. Ele me confidencia que freqüentam há muito tempo seu bar, desde quando era na rua de cima. Diz que os dois são formados em direito, têm um escritório de advocacia no centro da cidade, e que andaram uns tempos separados, mas agora estavam casados.
Deveras fico um tanto espantado, pareciam tão jovens. Seu Oswaldo sabia de muita coisa mesmo. São tão harmoniosos que chego a imaginar algo com eles: eu e eles, uma noite dionisíaca, vinho, boa música, eu e eles. Idealizo como uma coroação, nada me apetece tanto quanto esta idéia; salvaria meus dias na cidade azul-pé-no-saco.
- Olha só, tá tendo um show de rock numa chácara na saída da cidade. Tá sabendo? – A menina obesa corta meu absorto gesto de observação do casal, com tirania estridente.
- Não, não to sabendo. Você não vai?
- Não tenho como ir. Eu e minha amiga – aponta para uma menina sentada em uma mesa com vários meninos – estamos super afins de ir.
- Como que é lá, como vai ser? – Questiono interessado.
- Cinco reais para entrar, vai ter várias bandas: blues, rock, punk rock, e até uma banda de blackmetal no fim da noite.
- Puxa, que coisa hem. Vou pensar.

Jamais imaginei uma miscelânea de bizarrices acontecendo aqui, na cidade azul-pé-no-saco. Não gosto de blackmetal, nem de punk rock, nem de coisa alguma, pra dizer a verdade, mas me seria um grande alento ver pessoas ‘piores’ do que eu, pessoas que certamente haviam de estar em um show de ‘blackmetal’. Pessoas engraçadas e confusas no turbilhão cinematográfico da vida.
- E aí Seu Oswaldo, que o senhor acha disso? Será que vai ser bom? – Invoco, humildemente, a sabedoria de alguém mais experiente.
- Olha rapaz, lá é o seguinte, vai ta cheio de nego malandro, aqueles cabeludos feios, toscos, é meio perigoso, eu não sei não, tenho um pouco de receio, parece que eles comem gente, e é esse tipo de pessoa que vai ter lá. Bom, mas vai sim, vai ter menininhas de fricote também, sabe como é: sempre tem. E acho que você se diverte, é só tomar cuidado e não esbarrar em ninguém.
- É, acho que vou mesmo. A cerveja aqui tá boa, o papo também, mas vou ver coisa estranha, vai ser divertido, no mínimo. Até outro dia. Mas, talvez eu volte aqui ainda hoje, se estiver aberto.
- Então ta bom, se cuida.

Eu, a estranha obesa, e sua amiga esdrúxula – pra não dizer estranha também – partimos para a tal chácara.

- Mas então, tenho um problema: vou ter que beber com vocês; só tenho dez, já gastei dois e cinqüenta no Seu Oswaldo, e a entrada ainda é cinco. – Revelo.
- Beleza, não esquenta.

Sim, as meninas são parceiras, penso auspicioso.

Chegamos ao inferno, uma banda até simpática toca músicas de sacanagem engraçadas. A cerveja está gelada e as meninas estranhas me proporcionam-nas sem mesquinharia. Há sim menininhas bizarrinhas, de fricote, e de todo tipo: engraçadas, fúnebres, suicidas, coloridas. Confesso que fico assombrado com a cena do mal que existe na cidade azul-pé-no-saco, dou boas risadas, e me divirto.
Gente caindo e vomitando no banheiro, gente fumando maconha em rodas, gente batendo cabeça, gente mostrando marcas nos pulsos, é isso.
Enfim, começa a banda do mal; há um telão mostrando cenas sanguinolentas e imagens deturpadas; e não consigo me desligar de um único pensamento: “a gente não vive a vida como é para ela ser vivida”. Droga, mas como é então que a vida deve ser vivida? Se tudo que a gente vive, a gente não escolhe. Qual é o jeito certo de viver a vida? Não consigo me abster destes pensamentos. Tinha visto uma menina pobre dizer isso na TV, e ali, no meio daquela celeuma, daquela música galimatias, obsessiva, que invoca o demônio, eu só consigo pensar nos dizeres da menina pobre da televisão.
Quando me situo novamente, tenho um impulso arbitrário de ir embora, as meninas estranhas não querem, digo que vou, querendo elas ou não, e que se quiserem, podem sim vir comigo. Esses impulsos são aqueles que metem um sujeito em várias encrencas, dependendo obrigatoriamente da circunstância, e não da lucidez e/ou estado de serenidade do tal sujeito. As meninas cedem por fim, e me acompanham. Uma delas, a amiga da obesa estranha, me traz um sujeito alcunhado de ‘punk’, pergunta se posso dar carona a ele. Digo que sim, contanto que fosse apenas até o bar do Seu Oswaldo. Sim, sou cuzão mesmo.
No bar do Seu Oswaldo, encontro conhecidas de outra noite, lá do bar mesmo. Há uma mulher de uns trinta anos entre elas, senta-se ao meu lado, começa a me fazer perguntas indiscretas. Sinto-me constrangido, peço licença, levanto e sento no balcão-de-bar junto de Seu Oswaldo, novamente. Converso com ele, que me pergunta sobre o show ‘trash’; ri de mim, rio também e digo que foi engraçado, divertido. Ele é camarada, me oferece uma cerveja de cortesia dizendo entender o porque de eu ter saído da mesa das ‘meninas’, ou piranhas famintas, como ele mesmo diria.
Termino a cerveja, levanto e volto até a mesa das piranhas famintas, apenas por gentileza, falo qualquer bobeira com elas sobre Beatles, não sei muito, falo tudo o que sei. O tal do ‘punk’ se chama Douglas, veio de uma cidade distante, nos confins do estado, e pequena, muito menor do que a cidade azul-pé-no-saco. Douglas diz que está feliz por estar ali conosco, ele é conciso, sabe dizer somente o que é preciso. Digo que fico feliz, também, por ele se sentir à vontade. Logo, a amiga estranha da obesa o beija, algo interminável, as outras riem banalizando o gesto. A moça dos trinta anos põe suas mãos sujas em minha coxa esquerda, olho atônito para ela que me sorri com devassidão. Concluo que já estou na mesa, por gentileza, há tempo demais. Já é tarde. Peço licença, despeço-me de todos, e vou embora.
No caminho, a cabeça começa a ribombar, bebi demais, penso. Mas também com a cerveja gratuita e gelada, não tinha como controlar, me justifico. Chego a pensar na comicidade de como manipulamos nossas vidas, sempre nos mutilando, nos afligindo, flertando com situações embaraçosas, e muitas vezes desnecessárias. É um grande espetáculo tragicômico, e sou capaz de pensar nisso, não sei se é bom ou ruim, ao passo que as coisas boas ou ruins deixaram de me existir. O desfecho é trágico e o enredo cômico. É disso que gosto. Aproveito o passeio filosofal pelas ruas da cidade azul-pé-no-saco – e não vou me cansar de repetir isso – para testar meu carro velho, tinha acabado de sair de uma longa semana na oficina. A droga do carro velho nunca ficava bom, todo mês passava uma semana na oficina, e nunca ficava bom. As ruas da cidade azul-pé-no-saco assumem um aspecto grave durante a madrugada. As aglomerações de pessoas se focalizam em pouquíssimos lugares, deixando todo o resto da cidade vazio, todo o resto para mim, como se fosse um presente divino, ou melhor: apenas uma concessão. Deuses não presenteiam mortais. Passeio sem acelerar, penso naquilo tudo, penso que tudo está para se acabar, penso que as coisas são assim mesmo, penso que talvez vivo a vida como ela deveria ser vivida, e isso me faz bem. Vou para casa, e durmo como há muito não dormia.

quinta-feira, abril 07, 2005

Em busca da terra perdida.

Em busca da terra perdida

Em busca da terra perdida, eu saio, naufrago, esqueço para trás minhas quimeras coloridas, quero a perfeição, a técnica inaudita, a harmonia desconcertante. Não consigo, não atinjo, isso não é coisa assim fácil, ou melhor: atingível – diga-se de passagem. No meio do caminho encontro um carneiro, na verdade trombo com ele; maldito carneiro embusteiro, me atrasa, me atrapalha, ensaia me enganar com seus ardis sutis, porém me esclarece. Diz coisas belas sobre os montes longínquos, me conta algo terno sobre as crianças saltitantes do inferno feliz, não posso crer tanto assim, o carneiro deveras me parecia embusteiro.
Sigo minha peregrinação tresloucada em busca do panteão dos deuses estetas - prescindo do safado do carneiro. Não sei onde fica, não entendo as placas, me perco em meio aos inúmeros atalhos que só me atacam com suas garras da confusão. Surge Setembrina, minha messias, redentora, sublime, pertinente, me indica o caminho das pedras, objeto: “este caminho é muito suntuoso, falho, difícil, assombroso”, ela me adverte, admoesta de que o caminho mais difícil leva à mais elevada apoteose, e assim tendo dito, se dissipa junto com as brumas montanhescas.
Não sei a verdade, o caminho das pedras não me mostra trilha, seqüência, caminho sequer a ser seguido; por outro lado: vejo o descer da montanha, não, posso então seguir o leito do córrego de águas agitadas, ou quiçá parar e esperar que o frio congele minhas aspirações. Hesito, oscilo, tudo se apresenta turvo em um décimo de segundo, supero, decido. Por fim, encaro o impossível, olho sisudo para o limbo em forma de pedras afiadas e intransponíveis, que me amedrontam por preceito rigoroso, natural; sim, vou ter com elas alguma conversa, algum tempo, ou alguma tentativa; o espírito buliçoso, que em mim faz sua morada, esperneia, grita, se debate; ele jamais permitiria que eu cometesse algo tão medíocre quanto esperar a neve me congelar; tampouco permitiria que eu voltasse para levar a vida atada, cômoda, e insustentável, que me espreita lá da cidade azul; com as imposições do espírito irrequieto, só me resta enfrentar o caos assustador dos pedregulhos, sigo em frente, com a coragem juvenil dos mártires.

Tiago Muzulon.

quarta-feira, abril 06, 2005

Na igreja.

- Maldito sóbrio ardiloso! - exclamou o diabo.
- Pra que tanta baderna? - retrucou o ímpio. - É simples sim, basta a gente conversar um pouco, talvez alguma coisa vá certo.
- Demônios, sacrílegos, impudicos, blasfemos, vão todos para longe! – O Padre.
- Eita, não é que o padreco chegou pro fusuê. – O Ímpio.
- Pode vir padreco, mas tire essa cruz maldita, me faz mal – O Diabo.
- Concordo, mas é mais uma questão racional do que sensitiva. – O Ateu.
- Eu só preciso de dinheiro pra comer, não quero saber desses perrengues todos de vocês. – O moleque de rua.
- Cala-te, tu estás enfermo com a presença deste truculento ser rastejante das trevas. Vá-te embora daqui. – O padre.
- Ó padre querido, o demônio te infliges?! – Madame sacristã.
- Esse padreco é veado, precisa é de um cacete. – O ímpio.
- Como ousas profanar minha pessoa assim, ó maldito ímpio!? – O Padre.
- Olhe só Sr. Padre, acho melhor o senhor parar com essa conversa ‘épica’, sua igreja já não domina mais o mundo, vocês já não são coisa alguma, e estamos cansados desse seu tom empolado, que saco. – O Ateu.
- Pare de falar assim com o padre. “Meu padre”, pensou. – A madame sacristã.
- Hahahahahaha, eu tenho poderes, sei que existe um ‘affair’ entre nosso reverendíssimo padre e a putona da sacristã. – O Diabo.
- Como Ousas?! Voltes já para tua morada abjeta! – O Padre.
- Ele não vai antes de nos contar a verdade. – O Ateu.
- Não há verdade. – A madame sacristã.
- Há sim senhora, você trai seu marido com esse padreco aí, e acha que tem salvação?! – O Ímpio.
E tudo se sucede semanalmente nas missas dominicais da cidade azul.

sábado, abril 02, 2005

A verdadeira explicação da vida, por Setúbal.

Posso ver, posso ver os luminosos brilhando em Braille no bulevar enfadonho da cidade azul. Posso tocar, posso palpar a sarjeta suja cheio de bêbados melindrosos chorando por suas falências infinitamente intermináveis. Posso ouvir, posso ouvir ladainhas hipócritas e ridículas de padres inclementes perante a dor dos fiéis omissos e inócuos, que sofrem, penam, e latejam por não haver sentido em suas vidas. Posso cheirar, posso cheirar o ranço dos negros depravados que se aglomeram nas ruas boêmias da periferia para ganhar algum trocado, vendem pó, maconha, bala, droga para todo tipo de sortilégio mental. Posso degustar, posso saborear a porra, o liquido de lubrificação da vagina de Dolores, aquele sabor acre, forte, dolorido como a vida inteira de Dolores. Posso compreender, compreendo com minha razão saliente a verdadeira verdade do mundo, a falta de percepção aguçada, a ausência de seres milagrosos, a proeminência da estupidez sobre a irrelevância, tudo se perfaz em droga. Entendo, entendo que tudo está muito acima da minha cabeça, e que jamais compreenderei a verdadeira natureza dessa estória toda, chamada existência.