terça-feira, maio 31, 2005

O menino pepino.

O vento bate doído na cara, é frio, corta, gela. Ele sabe o que faz, só pode. Penso, e isso me persegue. Vejo a vida naufragando em versos oblíquos, oblongas estrofes dispostas nas linhas como retalhos em uma toalha de mesa. Completando a parte que foge, de si mesma para si mesma, a parte que foge da outra parte, que completa, complementa. O pão já não preenche, a água não sacia, e quando vejo quanto vale aquela guria, me desespero, coro, esperneio e corro com pressa, pra ver se existe outra forma de alegria. Sucinta digestão, foi só um rocambole à moda antiga, breve sentirei fome novamente, de que importa? Pare com a digressão. Busque o fio do fim do dia. É a alergia, espirro, coceira, faz mal, tem também a bosta da taquicardia, quando esqueço e tomo um descongestionante nasal. Não posso lidar. Sou hipocondríaco, choro lágrimas de diamante, que nunca caem, nunca vêm, e nunca me farão ir adiante. O mesmo beijo que enleva, é aquele que lambe, corrompe e umedece os tempos. Não fosse o erro, a dor-de-dente, já me teria ido pelos ventos. “Jaz aqui um homem muito valente”, e isso é coisa que se diga? Que se escreva? Matem os leigos latentes! Os medíocres que se fazem adjacentes! Estou em campanha. Vale mais ver uma palavra que dói do que blasfemar assim sem jeito. Prefiro a excomunhão. São todos bárbaros lazarentos. Piores do que eu, e muito. Vou também morrer sem jeito, do mesmo jeito que vivi sem jeito, e quero palavras sem jeito na minha lápide, mas diferentes dessas daquele sujeito. Fiz sem jeito aqui uma exigência. Pronto. Vem, tigela, corta meu cabelo, “és cura panacéia”, para todos os males, liquida num só movimento. E o jeito? Que jeito, menino? Há jeito não! Pare com essa querela do jeito! Há sim. Há de ter jeito sim. Não há não, mulher, sou sem jeito, enjeitado, como há de se ter jeito? Tendo ué. Mas não tem, mulher. Vai pentear macaco então, ora. Vou, mas já aviso, vou que vou sem jeito. Jeito pra vida não sei como é, jeito pra morrer também nem imagino, só sei que preciso desconversar e achar algum tino, um rumo, um teco do destino, que me faça ver com outra lente, que me faça fazer algo imponente. Só que sou impotente. Estrume incompetente. Falo com os outros, que não me escutam, mas comigo falo diferente, falo sem coceira de palavra, sem garganta doída de poeira da linguagem. Precisava conseguir falar mais com os outros. Precisavam - os outros, eu não!, porque não sei, sou sem jeito - inventar outro jeito de falar, outra linha de palavras, que não desse mais motivo nem espaço pra palrear. É isso mesmo, acho que consegui dizer, o preciso é uma língua que não dê espaço pra palrear. Pepino bonito vó! Não vou levar menino, tá assombrado. Que que é pepino estar assombrado, tia? É pepino apodrecido. Mas eu achei este pepino tão bonito, mãe, leva pra mim, leva?! Não dá, menino, não vê que sua avó e sua tia não vão deixar. Mas eu quero muito, mãe. Tá bom, menino, pode mandar embrulhar. O pepino que imagino por dentro, não é o mesmo por fora, só assim manifesto meu instinto. Sou menino novo, bobo mas nem tanto, sou como o pepino, de um jeito por fora, de outro diferente por instinto. Ninguém vê, ninguém nunca me passou a faca pra ver como é, como sou, ou talvez ainda como vou ser. Queria poder me repartir em dois. Mostrar o meu âmago tinindo. Núcleo indistinto, um pouco indigesto, mas lindo, meu lindo âmago brilhantino. Não há verdade em minhas palavras, tampouco desatino ou desafeto, mas o que falo é um pouco do que há dentro do pepino. Quando chegar em casa, vou falar pra tia, pra mãe, pra avó, pra quem mais quiser ouvir e agir, que se parta aquele pepino, o mesmo que dantes deram por apodrecido, mas que de tanto insistido, aqui pra casa foi trazido. Sou bobo. Não tanto. Quero ver o que há dentro. Dentro das coisas. Do menino. Do pepino. Da mulher, Do velhote assassino. Pois então que partam o pepino!, e vejam como ele é por dentro, que não o dêem por perdido, que não o joguem fora sem tê-lo partido, pois é mais um dos pepinos, de um jeito por dentro, de outro por fora, assim como todos os meninos pepinos, enjeitados em seus destinos por seus desatinos.

domingo, maio 29, 2005

Reverência.

Ismar Tirelli neto disse algo muito bonito sobre a vida, que merece ser reproduzido: "-- A felicidade... ela é um estalo, um fragmento. É arbitrária e insustentável. Escapa às maquinações humanas. E há coisa mais dolorosamente humana do que a tática, o impulso de bolar estratagemas ? Pois sim -- não há indicador mais eloqüente da impotência, da excepcional estupidez do ser humano, que a felicidade".
É realmente patético ver o homem o tempo todo maquinando, bolando estratagemas para burlar a realidade e atingir a felicidade. Algo sem solução, pois ela vem e passa sem ao menos se dar conta. Tantos planos, tantos objetivos traçados, tudo em vão. O Ismar sabe explicar as coisas.

Crônicas de um psicanalista 2 (Desabafos e desavisos).

Hoje é domingo, em dias como esse eu costumo ficar deitado no chão da minha sala, olhando o teto; adoro observar tetos, eles podem dizer tudo sobre uma casa, um ambiente, uma pessoa, exceto quando são maquiados ou dissimulados (pintados), o que também denuncia características de quem vive sob ele.

Anteontem, sexta feira, não foi um dia atípico; tudo que eu mais quero do resto da minha vida é viver um dia atípico, um dia que me inspire epitáfios, creio que já é hora de pensar sobre isto. Não quero morrer sem ter uma frase bonita em minha lápide, no entanto, não basta ter a frase, ela tem de ser verdadeira, tem que ter sido vivida.

Acordei às nove e meia, um pouco atrasado, só teria paciente às quatorze horas, estava tranqüilo. Foi difícil chegar ao sono, perambulei tanto pelo meu apartamento vazio, que resolvi descer e ir até qualquer bar, e eu achava que já tinha me livrado do alcoolismo, mas não, tudo culpa do sono que falta, da companhia que não apraz, da atividade que não desgasta, da vida que não acaba, tive que recorrer novamente a ele, ao doce, ao purificador leal, o álcool, danem-se recaídas, danem-se o que diriam os médicos, precisei beber e bebi, como você precisa respirar. Não sei se ele foi o culpado por eu ter perdido tudo em minha vida, ter me levado a vícios mais pesados, mas eu não o culpo, culpo minha demência, minha fobia social. Na verdade, meu grande problema é não suportar mediocridade.

Quando conheci Rita, há trinta e um anos, estávamos terminando a faculdade, ela fazia desenho industrial, design daquele tempo, era uma garota visual, desenhava muito, pintava, fazia de tudo com imagens e com seu corpo, tinha tatuagens escondidas, e eu admirei aquilo, era tão contrário àquele mundo, vivia enfiado em pensamentos sem fim, em insônias metafísicas (sempre fui insone), e ela veio pra me despertar ao mundo dos sentidos, ver as cores; antes, era como se eu vivesse em um filme P/B, não havia cores. Encantado, namoramos, algum tempo depois ela engravidou e tivemos que casar, não me incomodei, gostava dela, Rita também. Sofia nasceu alguns meses depois. Três semanas antes eu havia entregado minha monografia, Rita havia trancado. Comecei a trabalhar e a vida foi seguindo seu curso normal. Depois de algum tempo, Rita retomou e concluiu seu curso pra nunca mais trabalhar, pois logo em seguida veio Bárbara.

No começo, éramos uma família interessante, talvez até exótica, Rita decorava a casa e as meninas com suas excentricidades e extravagâncias multicoloridas, eu adorava aquilo, mas me sentindo importante, mantinha meu visual circunspecto de psicanalista, usando roupas cinzas e pretas variando pouco. Fosco. Não me deixava afetar. Talvez fosse feliz, na verdade eu era um tonto.

Os anos passaram, as meninas cresceram, foram criando seus universos para depois nos expulsarem deles, eu e Rita mergulhamos numa realidade absolutamente insossa, ela abandonou as cores, eu abandonei os livros, as meninas nos abandonaram. Rita ficou insuportável, medíocre, já não inventava formas perspicazes de burlar a realidade, já não cativava nem mesmo o vento em sua volta, os modos de vida dela se tornaram comuns, vulgares, e eu não podia lidar com aquilo. Brigamos e Rita me mandou embora, fui convicto de que mudaria minha vida. Só que depois disso tudo aconteceu, ganhei e depois perdi de novo; aqui estou cada vez pior. Malogrado pelas pessoas que vejo, pelos hábitos, criei minha fobia social numa redoma impermeável e a fiz perniciosa, com todo o carinho nefasto que há dentro de mim.

Sexta, às quatorze horas, minha paciente era uma mulher de trinta e seis anos, contava-me futilidades todas as sessões. Muitas vezes eu dormia de não agüentar a chatice. Mantive-a por algum tempo por ela ser da classe dos bons pagadores. Mas ontem não pude resistir. Falou o tempo todo sobre uma briga ‘séria’ que tivera com o marido em função da escolha da cor da nova casa deles. Não tenho mais idade pra isso, prefiro não entrar nos detalhes da ‘briga’; ao final da sessão, apenas disse-lhe que não voltasse mais, porque o problema era tão grave que eu me sentira incapacitado de tratá-la. Perguntou se havia alguma indicação, ficou preocupadíssima com o ‘problema grave’, fez mil perguntas, deixei-a falando sozinha e por fim, num estouro, pedi-lhe que se retirasse logo para que não me enlouquecesse. Saiu inconformada. Talvez eu precise criar paciência pra curar o vulgarismo destas pessoas, mas não tenho, talvez então eu deva lecionar e instruir jovens para esta tão nobre, salvadora e necessária profissão, a profissão de Redentor de Almas, ou seria melhor Resgate humano, ou Aniquiladores da mediocridade, sim, uma ciência chamada mediocreismo. Ela seria estudada, haveria especialistas capazes de diagnosticar e combater a doença, haveria seminários, fóruns, criariam novas possibilidades dentro do mediocreismo. Não tenho mais saco pra isso. Deixa pra lá. Estou curtindo minha fase fracassada da vida, vou ficar em paz que ganho mais.

Explico: coisa que não suporto é a mediocridade, penso que deveria escrever um tratado sobre esse tema, discorrer exaustivamente para depois me sentir livre e morrer. Mas tenho preguiça, tudo me é tão difícil nessa idade, não consigo sentar e organizar o que quero dizer. Acho que a mediocridade, a vulgaridade, e essas coisas de gente indecente, deveriam ser tratadas como doença da humanidade a ser extirpada para a salvação da espécie. Tudo de ruim que existe é causado por gente assim. Gente se despedaçando em despedidas longas e enfastiantes, gente evitando assuntos ‘obscenos’ pois se ofendem com facilidade. Sinto vontade de cuspir e vomitar merda em cima de toda essa hipocrisia, esses falsos melindres, esses assuntos que são evitados e censurados por motivos desonestos. Por que censurar a realidade? Por que censurar coisas que todos fazem, fizeram ou vão fazer? O que há de errado nisso?

Todo o sofrimento da exclusão social que sofro hoje é decorrência da minha ação de purificação. Trato as pessoas com objetividade, e elas me destratam. Convencionei a só abrir a boca quando for necessário, aí me chamam de esquisito. Esquisitas são as pessoas que conservam tradições incoerentes, infundadas e que elas nem mesmo sabem de onde vieram ou por quê existem.

Já são vinte e uma horas de domingo e eu continuo aqui, deitado no chão do meu apartamento vazio, olhando o teto, estou com vontade de beber algo para ter sono, sei que não devia, mas sinto vontade. A desvantagem de ser alguém correto, e socialmente coerente como eu, é não ter amigos, não ter pessoas que me compreendam. Sei que elas existem, mas estão muito distantes de mim ao ponto de não poder convidá-las para beberem algo em minha casa, sob a condição de que elas trouxessem a bebida. Estou só. Moro em uma cidade cheia de gente indecente, o que me faz mais só ainda. Talvez se eu pudesse me dividir em dois, ou quem sabe até em três, poderia não precisar de mais ninguém, mas infelizmente sou indivisível. Vou continuar olhando o teto, até o sono vir ou o sol nascer, vamos ver quem vai vencer hoje. Às oito tenho que estar no consultório, sessão com o Orlando, aquele que casou com o michê e agora está arrependido. Talvez eu o dispense amanhã. Vai depender de como estará minha geladeira.

sexta-feira, maio 27, 2005

Crônicas de um psicanalista.

São cinco horas da manhã e eu ainda não preguei os olhos, droga, tenho um paciente logo às oito e preciso estar inteiro pra agüentar aquele patife contando sua vida sexual desastrada. Paciente não, um homossexual que tem surtos de misofobia e seu companheiro não entende. Foi casado com uma mulher durante doze anos, teve uma filha, sempre levou uma vida monótona, até conhecer Eusébio, um michê. Tudo começou por curiosidade, Orlando pagou-lhe para apenas tomar alguns drinques em seu apartamento num fim de semana em que sua esposa havia viajado, e conversar. Orlando queria saber como era aquilo. Os encontros se repetiram em vários outros locais, se apaixonaram reciprocamente, Eusébio parou de cobrar, Orlando divorciou-se da esposa e montaram um apartamento. Agora, depois de já terem dois anos vivendo juntos, Orlando veio procurar-me porque tinha surtos de misofobia. Hoje, às oito, será nossa segunda sessão, ainda estou a perscrutá-lo, mas creio que seja um caso de indecisão sexual. Orlando levava uma vida insípida com sua ex-esposa, teve um vislumbre da fantástica vida do michê, empolgou-se, afinal não era muito conservador, e acabou casando com ele. Agora, depois de tudo, caiu na real de que não é homossexual e deve ter dado a desculpa, para Eusébio, de que estava sofrendo de misofobia. Deve ter me procurado só pra dizer-lhe que está se tratando. Eles que se fodam, o importante é que me paguem, já estou velho e preciso de dinheiro para viver até o fim, fiz juramento, senão desistia logo e mandava me enterrarem.

Sete e meia resolvo levantar da cama, ou colchão, havia vendido minha cama de madeira maciça com colchão de água pra comprar cocaína, na época que fui viciado, mas pronto, já passou. Esquento leite num fogo amarelado, misturo um resto de achocolatado e tomo, um gosto azedo inflama minha boca, cheiro a caixa com o resto do leite e está podre. Merda de mania de abrir a caixa de leite e deixar que azede. Estou com fome, mas já são quinze para as oito, preciso me apressar. Desço correndo as escadas, digo bom dia a ninguém, prometi pra mim mesmo evitar esse tipo de reverência, quero deixar de ser humano polido, é uma das minhas metas, por isso também evito o elevador, mas mesmo assim sempre tem um infeliz apressado como eu indo pelas escadas.

Ganho a rua, está frio, me contemplo por estar bem agasalhado e entro no ônibus, tudo bem, são apenas dez minutos até o consultório. Quando chego, Orlando está impaciente com minha demora, pergunta-me sobre a secretária, respondo-lhe que a havia despedido por contenção de gastos e justifico: “não é necessário, estou me abstendo das inutilidades”, Orlando sorri embaraçado.

Orlando está bem vestido, é um puto burguês mesmo, tinha uma fábrica de cachecóis, se não me engano. “Eusébio só pensa em transar, eu não gosto mais, todo dia fica constrangedor evitá-lo, ele tenta durante a madrugada, tá dando desespero, acordo às vezes com ele já se enfiando em mim”. Puta merda, o pulha mal chegou, deitou-se no divã, e antes que eu começasse a por meu raciocínio em funcionamento, já começou me dizendo essas obscenidades. Tenho que lidar com cada coisa. “Veja bem... Orlando”, começo a pensar com certa dificuldade, as pálpebras pesam, não consegui pregar na noite passada, “Talvez não seja o momento de vocês rediscutirem a relação?”, Ufa, consegui falar algo, nada pior do que um psicanalista já velho, incompetente, e com disposição nenhuma de trabalhar. “Não sei como proceder, eu fiz ele abandonar seu mundinho de prostituição, ele me amou, confiou em mim, é só um menino de vinte anos, veio de família humilde, iludi e comprei o guri, agora vejo que foi tudo por capricho; mas pra ele não, pra ele é verdadeiro, está amando a vida burguesa que leva comigo, creio que me ama também”. Ouvindo essas coisas eu só pensava em sacanagem, fico imaginando posições eróticas entre Orlando e um rapazola de vinte anos, um sodomizando o outro, revezando, faço caretas com esses pensamentos, sorte que Orlando não me vê, o divã fica pro outro lado. “Orlando, você deve ser sincero, se esta situação lhe incomoda, lhe é desconfortável, você deve chamá-lo e expor tudo o que está se passando”. “Sim, mas não quero machucá-lo”, “Compreendo sua nobre preocupação, mas não pode se agredir para evitar que ele se sinta agredido”. Orlando fica um tempo calado, pergunto-lhe se não tem outras coisas para dizer, pergunto sobre a vida profissional, Orlando nada responde, aproveito e o estimulo a não falar: “Pense, pense profundamente sobre isto que se passa aí agora, Orlando”. Tiro uns cochilos, o relógio toca, me desperta, creio que Orlando também estivera cochilando, levanta-se, despede-se e confirma o mesmo horário para a semana que vem. Agora Orlando iria para sua fábrica de cachecóis iniciar, às oito e meia, seu expediente de mandar, haveria dois ou três secretários bajuladores rindo de qualquer piada infame que Orlando fizesse, inclusive sobre mim, sobre meu consultório; talvez Orlando estava achando tudo uma droga e só viera me procurar por ter prometido a Eusébio que procuraria alguém, Orlando devia ser mais um perdulário burguês, um pouco velho, daqueles que participam de orgias cheias de champanhe importado, prostitutas e viadagens.

Sinto certo alívio ao vê-lo saindo pelo batente. Olho em minha agenda, saudades da Dona Alana, tinha mãos bonitas, unhas bem cuidadas, dedos delgados e brancos como talco, lembro deles percorrendo as páginas de minha agenda até chegar no horário do próximo paciente, depois passava o indicador por sobre o nome e me informava, como se lesse com a ponta do dedo, mãos e dedos prestimosos, um perfume doce, Dona Alana fora última coisa doce que houve em minha vida, mesmo sem nunca possuí-la, foi um erro tê-la despedido.

Meu próximo paciente só seria às dez, então volto para o interior do consultório, deixando a porta da ante-sala aberta, e olho para o teto, estava precisando de nova pintura. Não sabia o que fazer, os pacientes estavam ficando pingados em minha agenda, já tinha vendido meu carro, meus móveis mais desnecessários, minhas roupas caras, meus relógios, sapatos, só me restava o apartamento onde vivia, o outro tinha dado pra minha viúva dividir com as crianças, e a chácara da praia deixei com o caseiro, ele merecia.

Caminho duas quadras até o boteco do Seu Delano, ele me recebe com um cafezinho e uma média, agradeço e acabo comendo mesmo sem fome. “E então seu doutor, como andam as coisas?”, “Olha Seu Delano, vão nas mesmas”. Havia uns oito anos que eu tinha aquele consultório perto do bar do Seu Delano, e desde sempre eu ia até lá tomar um cafezinho, desde sempre também Seu Delano me fazia essa pergunta, o gesto de cordialidade já havia se tornado uma obra de arte, exatamente igual desde a primeira vez que pus os pés ali. Juro que pensei em tomar uma pinga, pra mudar o disco e ver como Seu Delano reagiria à esta quebra de protocolo, mas desisti, tive preguiça de incomodá-lo.

Na volta ao consultório, chuto latas, sorrio para os mendigos, lembro-me do velho sebo do Cardoso, na Rua de cima, entro e começo a folhear livros de psicologia, não tinha mais saco para ler aquilo, corro logo então para literatura, esbarro em Carlos Drummond, depois Ferreira Gullar, novamente concluo não ter mais paciência. Vou embora frustrado, nova literatura no sebo ainda não tem, só os velhos já desgastados, cresci com eles oras. Sempre que a idéia de ir até um sebo me invade a mente, penso em ler algo que me envolva, que me faça diferença, que me faça sair do sebo com um livro nas mãos me sentindo o homem mais afortunado do mundo porque naquele dia não precisaria me preocupar com algo a fazer ou algo para ocupar a mente, na verdade, isso foge do plano do pensamento e vai aos poucos conquistando o plano da quimera. Imagino meus pêlos se arrepiando, como dantes, minha mente entrando em parafuso e tendo insônia por causa do desfrute obsessivo do livro, tamanha a qualidade. Mas me desaponto, sempre; acho que o último livro realmente devastador, ou que simplesmente fez diferença, foi há uns quinze anos atrás, O Estrangeiro, do Camus, pelo menos esse é o único que me lembro.

Volto ao consultório tentando lembrar quem seria ‘Sra. Madalena’, tinha marcado para as dez horas; como havia dispensado todas as minhas anotações sobre pacientes no acesso de fúria da semana passada, teria que me recordar dela, sem ajuda, talvez fosse sua primeira consulta. Dane-se, ainda são nove e quarenta e sete e até ela chegar eu devo lembrar.

quarta-feira, maio 25, 2005

O homem do jornal de hoje.

Folheando o diário de hoje, encontrei um artigo sobre o homem magro que foi encontrado morto e nu na praça central da cidade.

Era um homem obscuro, os que o conheciam disseram que dificilmente ouviam sua voz ecoar em vão, não sabiam de onde viera, vagava pelos bares, botecos e restaurantes sujos do baixo centro pedindo restos de comida, legumes levemente apodrecidos, ou talvez até alguma carniça, o que tivesse, trocados.

Esgueirava-se pelos monumentos, pelas calçadas cheias de pó-de-vento, pelas pisadelas displicentes dos transeuntes mais preocupados em preencher suas ânsias consumistas e vagos alentos do que evitar tropeços maldosos em moribundos como Ele, de talento.

Eu sabia dele por mim para mim mesmo. A fobia social o expulsara do seio familiar, do convívio enfadonho com seus comensais de casa, era tudo um saco. Um belo dia, juntou seus mais valiosos apetrechos de vida: uma escova de dente, uma pasta, uma lâmina de barbear, um par de meias e uma cueca (além dos quais já vestia), umas bolitas (bolinhas-de-gude) da infância, uma camiseta, uma bermuda, uma calça, e Fausto, do Goethe, livro que considerava obra máxima da literatura. E foi embora, no horário que os guardas noturnos apitam pra mentir que estão acordados.

Não sabia aonde ir, vagou até o dia clarear, parou em um posto de gasolina, conversou com alguns frentistas, pediu dicas, e logo arrumou carona em um caminhão. Chegou na cidade-azul-pé-no-saco, aqui ficou, gostou do clima, achou a cidade bonita, as pessoas pareceram simpáticas, talvez isso explica.

Armou acampamento na praça do centro, não tinha trocados, não tinha mais coisa alguma, deixara tudo para a mulher e aos filhos em casa, podiam precisar, ao passo que ele precisava de mais nada. Conversou com alguns mendigos novos colegas, foram cordiais, em poucos dias trocavam afetividades e dividiam o pouco que tinham para comer.

Pedia, não se envergonhava disso; era bonito, corpo magro e esbelto, mesmo com a barba crescida por já ter enferrujado a lâmina, tinha modos de cavalheiro, apesar também de pedir desculpas por viver, costurava frases lisonjeiras às passantes mais interessantes; poder-se-ia dizer até que comprava trocados em vez de mendigá-los, com seus versos ataviados. Foi adquirindo notoriedade entre os comerciantes da cidade, até não se importarem mais em vê-lo proclamar na fachada de suas lojas. Famigerado, minha avó chegou um dia chamando-me para assistir o mendigo habilidoso que cuspia versos como aquele que fazia com o fogo em outra ocasião, na do circo. Não pude ir, estava ocupado em fazer nada, agora me arrependo.

Foi numa noite em que a polícia havia recebido denúncia de tráfico na praça, Ele dormia tranqüilo nos seus jornais, de pança cheia, recebera naquela noite um prato farto, eles vieram e pregaram bala em todos os vadios, sem distinção nem discriminação; não tinha gente, não tinha poeta versador, não tinha errante afetivo, não tinha jornal velho feito cobertor. Foi sangue com grito seco, abafado mesmo, ecoando sem jeito na madrugada desgastada, junto com o suplício centenário dos índios, junto com a falência Dele, junto com os amigos que fizera, junto com os agrados merecidos que tivera. Os gritos, por mais dor que exprimiam, eram o atestado da vida que se expiava, do descanso que procurava; Ele não mais precisaria pedir desculpas por viver, e isso o contentava.

Hoje, o primeiro gari que se arriscava a varrer o chão daquilo, viu a baderna, gritou, pediu socorro, mas ainda não tinha gente por lá. O sol foi subindo, as lojas se abrindo, o povo chegando e sucumbindo diante da barbárie inaudita na cidade-azul-pé-no-saco. Ninguém entendeu, a polícia não explicou, os amigos não choraram, pois também haviam ido; a cidade ficou chocada e as pessoas fizeram nada. Eram só mais alguns ociosos, dentre os quais se destacavam alguns malditos talentosos.

Senti perplexidade, talvez nada mais, não podia imaginar algo assim. Tão próximo e tão distante de mim. Era só um homem, o jornal dizia, que pedia licença e desculpa para viver, sempre cabisbaixo, tentando agradar alguém, qualquer pessoa que fosse, soltava seus versos ao ar, sem pretensão, sem devassidão nem ambição, estava ganhando respeito, pelo menos um prato de comida por dia recebia, ou comprava, eu diria, com seus versos sutis, cheios de magia, cheios de beleza e com nenhuma agonia, apesar dos pesares. Era só um homem doce, queria ter paz, abster-se do convívio insólito e desgastante da família, fez isso de um jeito estranho, de um jeito dele, jeito de um homem sagaz.

domingo, maio 22, 2005

Ele nas manhãs leves.


Às seis horas da manhã Ele se levanta, toma um banho rápido, está frio, veste sua ceroula, a calça, a meia de lã, a camiseta de algodão fino, o suéter preto ganho da avó, a camiseta uniforme do colégio e a indefectível blusa de flanela. A brisa tépida que vem da janela ao abrir faz com que se sinta agasalhado. Seis e quinze, desce até a cozinha e esquenta leite com chocolate, come pão com queijo e manteiga derretidos, todos dormem na casa. Seis e vinte, a mãe levanta-se e se surpreende com a presença do filho na cozinha, pronto e tomando seu desjejum com naturalidade excessiva. Questiona o garoto que nada responde. Insiste e Ele diz que não queria mais dormir, sentira vontade de se levantar mais cedo e não tinha razão para evitar.

Junta suas coisas e pega o caminho da escola, a mãe apressa-se em impedir o filho de partir tão cedo, alega que se esperar poderá levá-lo ao colégio, pois há o irmão para ser levado mais tarde. Ele não quer, prefere ir só.

No trajeto de dois quilômetros, Ele pensa exaustivamente em tudo, estava aborrecido com a mãe naquele dia, não queria ter de enfrentar o percurso de dois quilômetros ouvindo a voz maçante dela reclamar lamúrias sem fim. Não sabia ao menos o motivo de estar chateado com ela, só não queria ter de aturá-la. Talvez tenha sido o sonho da noite anterior. Talvez tinha sonhado com a mãe o incomodando durante muito tempo, talvez apenas sentia mágoas inconscientes por ela, que não era a melhor do mundo e que nunca preenchia as brechas que poderiam fazer com que fosse. Na verdade ela não sustentava o menor interesse por ser a melhor mãe do mundo, e fazia isso parecer virtude.

Quando a aula acaba, Ele volta pelo mesmo caminho, nenhum colega o acompanha, todos estranham ou têm medo Dele, seu cabelo é muito comprido, seu rosto muito pálido e fino, seus modos muito esquisitos. Precisa ser ouvido, precisa de amigos, mas a mãe tem problemas demais, as pessoas em sua volta estão chafurdadas em suas ocupações, ninguém sente o cheiro que exala de fora dos próprios problemas.

Não se cansa de tocar no rádio discos antigos, discos de motivação sem fundamento, discos queixosos de pessoas que tentam se empurrar e empurrar quem ouve para o fim do vencedor. Mas Ele não é vencedor, é um perdedor espúrio, um perdedor que não serve para catar latinhas, um perdedor que não sabe ser mendigo decente que prostitui belas palavras em troco de migalhas. Ele só sabe cantar para si suas próprias derrotas e desilusões, musicados meticulosamente em notas deprimentes, notas de aversão, notas de desencaixe.

Como hoje, desde muito tempo, e por um longo futuro ainda, Ele vai continuar percorrendo seu caminho de dois quilômetros, até sua escola fundamental sozinho, sem ouvidos, sem carícias, sem vontade. Faz porque tenta ainda uma salvação, tenta aprender a ser gente, tenta se encaixar na ponta do alfinete sem cabeça, sem tacha, sonha um dia poder se equilibrar num chão – para Ele – incongruente, onde todos se acotovelam e dão um jeito de amontoar. Mesmo com seus pés já inchados, Ele não vai desistir, ainda não pensa nisso, porém não descarta por todo essa possibilidade.

domingo, maio 15, 2005

Cartas Ausentes.

Trazia consigo uma flor de afeto na lapela; pequenas algibeiras costuradas por fora com pregas finas sobre as calças, caminhava a passos descuidados, saltitantes, feliz por estar indo pra casa encontrar sua mãe que lhe preparava a refeição.

Amorim se rejubilava com as carícias viçosas de sua mãe. Contava a ela, todos os dias, como havia sido no colégio, qual das frutas havia comido primeiro, quais colegas haviam pedido teco, as lições de casa. O orgulho de Henriete era abundante por seu filho, não lhe media gracejos.

À noite, deitava-se em sua cama para ouvir fábulas. Henriete passava uma, duas, às vezes até três horas contando estórias; não se incomodava em permanecer ali, desajeitada, fabulando ao seu filho o quanto fosse necessário para que o sono o alcançasse.

Eram tempos de guerra, o pai de Amorim fora enviado em uma das tropas para campos longínquos, todo mês escrevia-lhe cartas recheadas de atenção, tentando amenizar seus terrores através das meiguices que destinava ao filho. Os versos eram para sensibilizá-lo ao mesmo tempo que humanizasse seus dias de guerra.

Amorim sentia falta do pai, mas a mãe estava sempre presente, não permitia que se sentisse desamparado um momento sequer.

Os anos foram passando, os natais, as páscoas e os aniversários eram sempre sublinhados pela ausência do pai, que restringia sua presença e participação a uma carta por mês. Amorim revelava-se cada vez mais inconsolável, as lembranças do pai tornavam-se-lhe vagas; fragmentos de palavras contidas em cartas antigas se confundiam com frases orais ditas em breves períodos já remotos. Aos poucos, o pai ia se desfazendo na memória como o vapor da chaleira que se desvanece ao cessar da chama.

*

Um longo e rigoroso inverno molestou a região naquele ano, foi o natal mais impróspero e triste de todos; Henriete não mais conseguia abrandar Amorim, que já se fazia crescido e inquieto com todos os atributos que lhe eram devidos à idade. O dinheiro minguava com as dificuldades que o país passava em guerra e com a falta do homem. Ao cabo do mês de Abril, o sol timidamente começou a surgir, trazendo consigo algum calor, expulsando a neve e a neblina, convocando as flores a apresentarem-se diante dele, com toda a solenidade e respeito que lhe era devido e só elas sabiam fazer com seus desabrochos.

A frieza de ânimo, de Amorim e da mãe, era sutilmente enganada por essas gentilezas da natureza, que lhes atraíam e lhes compraziam. Em agosto, Amorim partiria para a escola normal superior da capital, já estava em idade avançada e não podia esperar mais pelo pai, que mantinha-se fielmente remetendo as cartas todos os meses. A guerra se delongara muito e o pai perdera todo o amadurecimento de Amorim.

No último dia do mês de julho, já terminando seus preparativos e prestes a partir, Amorim recebeu uma carta que havia sido postada por outra pessoa; de fato, já tinha notado certa demora no recebimento da usual missiva do pai, mas não tinha se preocupado, pois logo partiria e depois tomaria informação, através da mãe; além de que, o atraso podia ser uma falha do serviço postal, que às vezes se enganava.

Abriu o envelope cautelosamente, não disfarçando certo receio, e leu a mensagem em voz alta.

Enquanto percorria as palavras datilografadas naquele papel timbrado com a insígnia do exército, seus olhos não compreendiam seu significado, eram palavras soltas, esparsas, que somente no fim da carta adquiriram algum sentido e algum sabor. Amorim sentou-se no sofá a fim de amparar o corpo, a mãe se aproximou timidamente, se abraçaram e Amorim disse que o pai estava morto, num tom de conclusão. Morrera em uma das últimas batalhas da guerra, que agora já havia se encerrado.

sexta-feira, maio 13, 2005

Verdade das letras.

Minha odisséia pelo mundo exótico, opulento, garboso e suntuoso da literatura assume, a cada nova curva, uma perspectiva mais assombrosa. Comecei por avenidas largas, com canteiros arborizados, bulevares ostensivos, logo fui à auto-estrada, pista-dupla, pista-única, sertão, feiúra, e fui assim declinando por veredas cada vez mais inóspitas. Entretanto, a imersão profunda no mundo da literatura fez com que eu começasse a ver beleza nos recantos e vielas mais hostis, pelos quais circulo no presente momento. Essa viagem me é cansativa, mas aprendi a enxergar o que a maioria não enxerga, começo a entrever raios de beleza no sertão seco, doído e ensolarado das exegeses, das glosas, das enciclopédias monstruosas - essas são as piores de todas; apregôo-me uma obrigação imanente de deglutir toda esta parte cáustica do mundo das letras; quero ver a literatura, um dia, com os olhos mais minuciosos e dissecantes que o mundo já teve. Mas dói, tudo isso dói demasiado em minhas órbitas já um tanto infligidas por minhas próprias verdades, pela verdade que me circunda impudente, pelo incômodo que me causa a hipermetropia, e agora, também, pela verdade que as letras estão a me contar.

quinta-feira, maio 12, 2005

Visão 'arrebatada' do teatro da tragédia.

O teatro é algo que deve ser enaltecido. Por seu caráter alusivo para com a vida. A vida das pessoas na terra é uma grande tragédia grega, gigante, orgânica, onde os personagens se interagem tenazes, pegajosos. A vida é louvável, ou não, depende, claro, da posição de sua cadeira na platéia. Há toda sorte de tragédias enfiadas nesta grande tragédia. O ente maior do teatro é a tragédia, o ente maior da vida é a tragédia. A tragédia das paixões, das emoções, do amor, da morte, da violência, do sexo, do uso compulsivo, ou não, por drogas, tudo, é a gama de mecanismos que engendra a vida, que move o homem adiante, que o empurra com ímpeto mordaz para o fim, o fim da tragédia, o fim peremptório da tragédia invirtuosa do homem na terra, sem a possibilidade de um regresso transgressor; sem reminiscências pessoais, apenas as coletivas eternizadas pelas palavras.

quarta-feira, maio 11, 2005

'Changes'.

Puxa Charlie Brown, o que está acontecendo?! O mundo cibernético pirou. O orkut está todo traduzido para português, o blogger, além de já ter uma versão brasileira: blogger.com.br, agora portugueisou, também, suas configurações do blogger.com, pelo menos pra mim. Isso é reflexo da invasão dos brasileiros na rede, os putos gríngolas compreenderam, finally, que aportuguesar a web é lucrativo; só pode.

Não sei como anda isso em outros sites, afinal de contas, sou um péssimo 'internauta', mas o que vejo é essa tendência. Será que isso é resultado daquela campanha esdrúxula pé-no-saco de uns imbecis do Orkut pelo aportuguesamento da coisa? Sei lá, mas que eles chatearam muita gente boa, como eu claro, ah eles fizeram sim. Os chatos exigiram algo que nos é de direito: o interesse deles de nos agradar. Parabéns chatos.

Os passeios noturnos ficaram estranhos, em letras incompreensíveis, confesso que precisei de algo como 'cair na real' pra absorver essas mudanças, fui muito ingênuo e não esperava, mesmo. Eu estava tão acostumado com minha, nossa, condição de marginalizado da web, sabia que as ferramentas interessantes dela só se dispunham no idioma deles, ou a gente sabia ou a gente tava fora. Agora não, agora parece que a coisa vai mudando. A tão aclamada democracia de conteúdo da rede não é bem assim, mas tá ficando. É bom, porém estranho. Onde será que os gríngolas querem chegar com isso?

A verdade dos fotologues.

A verdade dos fotologues por Pedro Acosta é binária, concisa e hilária. Esse sujeito tem me rendido divertidíssimas conversas nas madrugadas insones da rede.

"smile like you mean it (but don't!) diz:
hahahaha. é só que existem dois grupos de flogs. os comerciais e os alternativos. e os comerciais são uma tentativa de ostentação por meios convencionais: "estou feliz! eu tenho dinheiro! eu tenho namorado! eu tenho festas" enquanto os alternativos gritam "eu penso! olha, só eu entendo o que estou escrevendo aqui!" :=)"

terça-feira, maio 10, 2005

Só quem sabe sobreviver deve entender.

As vidas se completam vazias, mas como é possível algo vazio completar outra coisa vazia? Não há explicação convincente, mas as vidas das pessoas completam outras vidas, isto é verossímil. Há uma necessidade frenética de sermos tocados, amados, e isto é simples? Não, não é nada simples. Nessas mesuras, ou necessidades de reverências humanas, é onde reside o absurdo. O absurdo é palpável, é comum, é simplório, tanto quanto vocês nunca imaginaram. O absurdo consiste em chegar em casa todos os dias após o trabalho e encontrar a televisão ligada em um programa onde um homem diz que é preciso orar para Deus. O absurdo pode ser um jornal que traz a manchete de uma mulher que se suicidou em frente a sua filha. O absurdo pode ser alguém ser amado.

E os jovens? Que se sentem protagonistas do mundo, heróis da salvação e redenção universal. De onde eles tiram tanta utopia? Eu queria saber, pois meus tempos de jovem estão se esvaindo, e ainda não encontrei respostas. Já não posso mais passar semanas à toa bebendo e tendo conversas ontológicas com meus amigos jovens. A cumplicidade é finita. E sua finitude consiste em um outro absurdo. Por que algo que pode ser tão efervescente é finito? Será que se não fosse finito, seria efervescente? O que é sereno? A maturidade? A lucidez? Não sei, ainda não os atingi. Mas devem ser. Sabem?
São perguntas-sem-respostas que somente quem sabe sobreviver sente a verdadeira explicação.

domingo, maio 08, 2005

Crise de consciência. E isso fica cada vez mais pessoal, mas não era pra ser assim, droga.

Não sei, mas acho que preciso definir com mais zelo os objetivos desse meu blogue. As coisas se misturam demais, e posts que eram pra ser vistos com impessoalidade acabam sobrando pra mim, e não está certo isso. Mas a culpa é toda minha, negligência. Vou ver se me dou um jeito, mesmo que esse jeito seja atirar-me ao lixo.

Preciso tomar muita água ainda para purificar meus instintos abjetos; creio que todas as pessoas tenham instintos abjetos, mas essas pessoas estão se tornando mestras, especialistas em mascarar instintos abjetos. Eu não, meio que em lambança acabo por revelar todo o opróbrio que reside em mim; é um erro, sei disso, pois me afasta dos outros, causa espanto, mas gostaria que todas as pessoas se voltassem para seus interiores, algum minuto que fosse, e constatassem que a abjeção reside em todos, querendo ou não. Todo mundo já pensou em matar a mãe, todo mundo já pensou em besteiras sexuais, talvez isso dependa da idade, e todo mundo fez ou fará besteiras, mesmo em pensamento.

O falso moralismo caminha junto conosco nas ruas da cidade, faz compras e paga no cartão, vai ao toalete, assiste televisão, como todos, e precisa ser encarado, não basta simplesmente joga-lo no armário, no quartinho velho de tranqueiras, na despensa, ou nas favelas. A bela conduta padrão deve ser reformada, a bela conduta padrão deve passar a ser a conduta da honestidade, sem melindres, sem fricotes.
Eu queria poder escrever coisas que fizessem bem, só coisas que fossem bonitas. Mas não posso, sou incapaz. Ouvi dizer que algo é bonito, que algo é bom, o que tenho a dizer sobre isso é que tudo deveria ser bom, queria que tudo inspirasse benevolências. Mas não, por oras me revelo um ogro lunático. Quero que saibam que em mim, apesar de todo o opróbrio, também reside um coração sensível, delgado, que interpreta filmes com ternura, observa meninas bonitas com - às vezes ao menos - candura, que lê livros e chora, que ouve músicas e resgata momentos com doce nostalgia. Quero que saibam que não sou a personficação do opróbrio, tampouco da candura, mas que sou humano misto, mesclado, heterogêneo e amontoado como todos vocês.

Os aindas de Sofia.

O caminho de casa nunca é tão difícil, mas naquela noite... Sofia receia o que está por vir, ou o que poderia. Ensaia lágrimas, mas elas se recusam a brotar por uma simples suposição, ou nefastas conjeturações. Sofia só escuta o vento frio zumbir e o toque seco de seus sapatos no piso duro da calçada.

Sofia ama seu marido, seu maior medo é ser traída, e está desconfiada disso. Saul é só um magricela glutão, daqueles que o metabolismo funciona com máxima proficuidade. E espera todas as noites sua esposa voltar da faculdade. Seu maior medo é que ela seja assaltada, assassinada, ou até estuprada. A cidade anda violenta nesses tempos e o ponto de ônibus onde Sofia salta dista uns cinco quarteirões.

Enquanto avança os passos, o coração aperta-lhe a respiração, sua intuição lhe acossa. Pensa no marido, pensa em outras mulheres, pensa em si, ajeita os peitos e o cabelo, pensa em ter filhos: não, o marido ainda não gostaria e ela ainda não tinha terminado a faculdade, eram tantos aindas que Sofia sente vertigens - sua vida toda estava encalacrada em aindas e mais aindas. Sobe as escadas com medo, um medo estranho, nunca tinha sentido isso - medo devia ter era na rua, no trajeto ponto-casa. Seu apartamento é no segundo andar, abre a porta com descaso, quase num chute, tem no rosto uma expressão de pânico, corre até o quarto sem deixar seus materiais, abre a porta e o marido está sentado mexendo no computador: “Oi, o que houve? Está toda descabelada! Veio fugida?”. “Não meu bem, estava preocupada com você, só isso”.

Diálogo do filme bobo.

- É só um filme bobo.
- Não, não é um filme bobo.
- Pare de chorar, é sim; é só mais um filme bobo.
- Que filme bobo o que, é lindo, faz diferença na vida das pessoas, faz elas procurarem ver alguma beleza no mundo, faz elas agirem com beleza, portanto não é só mais um filme bobo; além do mais, me fez chorar.
- Que nada, você é um bobalhão que chora por qualquer filme.
- Sabe o quanto não sou, e você talvez seja a pessoa que mais saiba disso.
- Desculpa, mas tenho um conceito diferente de você.
- Em sua profundidade, você tem esse conceito de mim sim.
- Não importa meu interior, importa que você chora direto por filmes bobos.
- Choro sim, mas não por filmes bobos, e você há de convir que choro cada vez menos.
- Sim, pois os filmes estão cada vez melhores.
- Engano seu, os filmes estão cada vez mais bobos, dificilmente há um como esse de hoje, bonito.
- Besteira.
- Ela não sabe fazer amor sem amor, mas ele faz, ela se incomoda com isso; por vezes até diria que sofre, no íntimo de sua personalidade expressionista. Ela o quer diferente, sente como que se uma doença o acometesse, mas não, é apenas um complexo de Arlequim que logra sua realidade; então eles se refugiam no campo, longe de tudo e das mulheres, e morrem felizes, no ápice da felicidade, como em uma dança singela de gente do interior; pode-se dizer que eles foram o único casal que viveu feliz, pois morreram felizes, e isso é lindo.
- Você é bobo, deve ter gostado tanto assim só porque o mocinho faz um intertexto com O Édipo Rei; sei que adora O Édipo Rei.
- Gosto mesmo, mas não é só por isso. Confesso que fiquei feliz no momento que ela vai até a casa do engenheiro, apenas para tentar fazer amor sem amor, e acaba pegando O Édipo Rei, aí o engenheiro toma-o de suas mãos e o joga ao chão, como se nada fosse, como se fosse apenas um compêndio descabido. Ademais, ela é linda.
- Bobo, bobo, bobo.
- Não sou bobo, apenas contemplo coisas que fazem diferença na vida das pessoas; isso me fez diferença, e deve fazer para muitos.

Parada.

Preciso parar de escrever besteiras, prometo que vou tentar fazer isso. Não que as besteiras esvaziem o conteúdo, mas o enchem de besteiras. Preciso parar com estórias de putaria; estou sentido, sem sarcasmo. Preciso parar de falar de mim. Pode parecer estranho, tento não ser eu mesmo aqui dentro, mas sou e sou em demasia. Aqui dentro é onde me encontro, criando personagens é onde me emulo ou simulo facetas perfeitas perpretadas em algum lugar que não posso atingir. A pessoalidade me persegue e cansa, queria apenas me representar por terceiros, mas sou incapaz. Não vou desistir porque se assim fizesse estaria me suicidando, juntamente com os auspicios de uma vida satisfeita.

sábado, maio 07, 2005

Um sono acordado.

Um sono atormentado me acomete, aturdido. Durmo muito. Acordo no almoço, volto a dormir, acordo no jantar, volto a dormir, acordo no limiar da madrugada, e passo-a em claro. Vejo só paredes fechadas, lupas hipnotizadas. O clarão é muito intenso e durmo pesado com sonhos perversos. Sinto todo o peso do mundo em minhas sessões oníricas de cinema que têm enredos ininteligíveis, imperscrutáveis, impenetráveis. Tudo no momento desperto é luz demais, e tudo no momento indolente do sono é treva com lampejos de sentido. Deve ser uma metáfora pela jornada que empreendo na busca do sentido. A tarefa de desvendar os sonhos cabe aos anciãos ou aos ‘beneméritos’ especialistas, a mim cabe apenas sonhar incongruências e inverdades. Minha consciência arma um engodo para capturar algo que desconheço, temo que seja minha segunda consciência. Temo ficar sem o propulsor que me arremessa diretamente para a ilusão do fim, criada pela primeira consciência, que é de indubitável relevância para seguir os dias com lucidez.

quinta-feira, maio 05, 2005

Antigo aquário.

Agora que estou de fora, ou melhor, estou em outro aquário, é que posso ver o quanto deturpávamos a verdade e infligíamos a razão. Tudo se mostra claro como nunca sob minhas órbitas já ofendidas pelas labaredas daquele mundo antigo.

Trabalhei há algum tempo com uma garota viciada em Cocaína, ela fazia vários malabarismos com os clientes e os produtos da loja para que sobrasse dinheiro no caixa, todos os dias isso rendia de cinqüenta a oitenta reais. Não fico fora disso, sabia e ajudava o mínimo necessário e ela repartia comigo os lucros. Todos os dias, ao final do expediente – às vinte e duas horas -, Orlando vinha vender-lhe pó. Era um senhor de uns cinqüenta anos, disfarçava-se de cliente – último cliente do dia - e vinha com os papelotes. Eu ficava sempre de fora, apesar da insistência de Tina, esse era o nome dela.

Após três semanas trabalhando juntos, eu e Tina, e muita amolação dela e de outros colegas das outras filiais nas quais eu já havia trabalhado, comecei a sair com o pessoal. Tina, após pegar seu papelote diário com Orlando, fechava a loja, mandava-me fechar o caixa, pegava a capa do filme que mais gostava – Donnie Darko – e estendia uma tripla carreira sobre esta superfície, ao som da trilha sonora do mesmo filme que inclui Echo & The Bunnyman e Gary Jules. Gostava disso, era um rotina de fechamento de loja diferente das outras nas quais já havia trabalhado. Depois que dava as três fungadas mágicas da dissolução, Tina começava a transbordar toda a sua blenorragia verbal; contava-me coisas de sua infância, falava de seus amigos, relacionava-me suas vicissitudes, encerrava aforismos e os mastigava com magniloqüência invejável para uma cheirada; e tudo isso naquele frenesi peculiar dos cocainômanos.

Então, neste dia do após três semanas com Tina, saí com o pessoal. Fomos, à princípio, a uma chopperia; achei que tomaríamos uns choppes e depois tudo se acabaria por si ali mesmo. Que nada, foi só o começo de um vôo vertiginoso pela noite, bebi muitos choppes, fiquei muito entorpecido, e acho que acrescentaram algo em minha bebida. Sabia de carros velozes, via gente estranha, via casas e decorações estranhas, luzes demais, e é tudo que lembro.

O que aconteceu depois da chopperia só pude recobrar através de flashes elípticos, que no dia seguinte atormentaram minha consciência causando-me uma severa ressaca moral.

Tina mudou-se da cidade frenesi, foi para uma cidade fria do sul do país. Dentre os outros ex-colegas, vários mudaram de cidade, outros mudaram de emprego, alguns se tornaram transexuais seguindo a onda do momento, um deles morreu numa trágica batida policial na boca onde pegava seu fumo, e outros nem sequer sei o que fazem da vida. Enquanto eu estou aqui, confortavelmente enfadado na cidade azul pé-no-saco, prestes a sofrer uma revolução.

segunda-feira, maio 02, 2005

Na locadora.

Hoje cheguei na locadora revoltado, cansei de pagar caro por meus filmes e, na locadora onde loco, não há promoções, não há prêmios, quase nada, exceto uma cestinha fajuta de páscoa que eu ganhei no concurso de páscoa deles. Reclamei com o atendente, disse: merda rapaz, nunca tem promoção aqui. Olha só amigo – tentando conter a irritabilidade -, eu gosto muito de filmes, mas desse jeito tá ficando foda, meu dinheiro todo tá indo pro ralo e to vivendo duro, vocês deveriam dar brindes para clientes assim como eu, bons locadores e bons pagadores, se não tiver alguma mudança – voltando a irritabilidade - eu vou começar a dar o calote hein – com a irritabilidade já restabelecida e logo em seguida findada numa explosão, ou gozo. Sim senhor, registrarei suas reclamações e sugestões para a análise da gerência, muito obrigado por sua preferência e tenha um bom fim de semana, respondeu-me o maldito. É uma droga mesmo esse mundo robotizado.

domingo, maio 01, 2005

Ensaio do caminho com curva.

Agora vou me enveredar um pouco pela pieguice, pela sensibilidade diligente e enfadonha. Eu achava que era fácil viver, mas não é; tudo bem que isso é pensamento de garoto bobo, não faz mal, precisa ter um começo. Descobri isso quando li A idade da razão, de Sartre. A liberdade é uma coisa intrincada, mistura-se demasiado emaranhadamente com a existência – droga, estou perdendo o rumo, mas vejamos em que vai dar. Camus, entretanto, é mais didático que Sartre por essas veredas. Ele passa uma mesma questão, de forma mais digestiva, mais apraz também. Camus é como um analista, ou um incitador de auto-ajuda. Sartre foi um analista complexo, dificultava demais as coisas, as relações, os questionamentos. A liberdade é sim algo quimérico. Ao passo que o condicionamento que recebemos ao nascer já nos implica a ausência de liberdade. A liberdade absoluta seria nascer e ser abandonado pela mãe a mercê da natureza; só que pensando por outra perspectiva, a mercê da natureza é outro fator condicionante. Ela implica em limitar sua liberdade. Liberdade absoluta então seria nascer e ser largado no universo sideral. Mas e a ausência de oxigênio? Implicaria também na ausência de liberdade. Como ser livre se o homem é condicionado a respirar oxigênio, e lá, onde não há gravidade, nem leis físicas terráqueas, não há oxigênio. A antiliberdade é um atributo inerente ao homem. Este nasce fadado a não ser livre. E esta não-liberdade-obrigatoria incitou o homem a desenvolver mecanismos conseqüentemente limitadores nas esferas políticas, sociais, e em toda sua forma e estrutura de vida. A liberdade não existe, é mais uma utopia, mas talvez a utopia mais inatingível de todas. E isso ainda não acabou. A ausência de liberdade segue a linha de uma espiral, começamos a não ter liberdade no universo sideral, depois na natureza e leis físicas terráqueas, depois no momento que nascemos, e isto tudo nos remete a infringir a liberdade em todas as esferas de nossa vida social, criada à imagem e semelhança das leis físicas e universais às quais estamos intrisecamente submetidos.

E Isso tudo não passa de diário de vida. Minhas idiossincrasias para com essas leituras estão sobrepondo a realidade, a realidade tangível. Minhas idiossincrasias estão cada vez mais capazes de formular um outro mundo, uma outra realidade à parte de toda esta realidade tagarela. A realidade verdadeira me açoita, me inflige. Não dá mais pra protelar a tutela da minha realidade, ela deve ser encarada e vencida.

Descobri mais, e descubro a cada suspiro.

Esses dias, fui com minha avó e minha bisavó assistir a um espetáculo musical de homenagem ao Pixinguinha, aqui mesmo, na cidade azul pé-no-saco. Era aquele tipo de show ‘música brasileira’ que homenageia tudo e todos, músicos cantam de tudo e de todos e não se cansam de louvar os defuntos. Nada contra, mas é que isso um dia cansa. Em meio a uma homenagem para Carmen Miranda (sei lá se é com N ou M), minha bisavó disse que achava que fazia mais de cinqüenta anos que ela tinha morrido, pois tinha ido ao velório, e tinha conhecido a irmã dela, eram amigas. Eu disse: poxa vó, e você nunca me contou isso. E ela: você nunca perguntou, oras.

E assim vivem-se os dias aqui na casa louca da Nadir, na cidade azul pé-no-saco, ouvindo estórias de bêbados carregados como couros velhos, excursões de barco que são arruinadas por enchentes repentinas, velhos matreiros e gananciosos do Mato Grosso que viveram nos anos 20, 30 e 40, se enfiando naquele matagal todo atrás de diamante. Gente que se curou com chá de palha seca, ou de água de bica de cabana. Sapos monstruosos – ela tem pavor de sapos -, chacinas em cabarés do interior. E a velhinha não se cansa de contar estórias.